Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

28 de novembro de 2015

Eugénio de Andrade: As Palavras

 As Palavras
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm,
cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?



Eugénio de Andrade
Portugal, Póvoa de Atalaia 1923 – Porto 2005
in Poesia
Editor: Fundação Eugénio de Andrade
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Fernando Pessoa: Mar Português


Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.



Fernando Pessoa
Portugal, Lisboa 1888-1935
in Mensagem
Editor: Ática
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Ugo Betti: Pecado Original




























A luz sobre os calmos mares
lentamente difundiu-se;
Dormiam como cerradas folhas
os continentes solitários.
E adiantaram-se as duas criaturas
Amedrontadas, dando-se a mão,
por dentro do silêncio e da frescura.

Aos seus passos, como uma pomba
desaninhada o eco elevou-se, depois emudeceu.
Timidamente abriram a ramagem...
espiaram a cava sombra das águas...
e naquela sombra avistaram dois rostos
que subiam fremendo
por entre os céus revoltos.

Então, com grande pasmo e medo,
olharam-se, tocaram-se,
Nus estavam, entre o céu e as rochas
e arripiavam-se, como ao vento,
Dentro dos torsos de argila
Inchava-se uma ignota
tristeza, com o mugir da onda...
Depois caíram. E gravaram a lama
com indelével cunho.



Ugo Betti
Itália, Camerino 1892- Itália, Roma 1953
Trad. Hermínia Ferreira
in Rosa do Mundo – 2001 poemas para o futuro
Editor: Assirio & Alvim
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Jaime Sabines: Eu não sei ao certo…





















Eu não sei ao certo, mas suponho
que uma mulher e um homem
um dia se amam,
vão ficando sozinhos pouco a pouco,
algo em seu coração lhes diz que estão sós,
sós sob a terra se penetram,
vão-se matando um ao outro.

Tudo se faz em silêncio. Como
a luz se faz dentro dos olhos.
O amor une corpos.
Em silêncio vão-se enchendo um ao outro.

Qualquer dia acordam sobre braços;
pensam então em tudo.
Vêem-se nus e sabem tudo.

(Eu não sei ao certo. Suponho-o).



Jaime Sabines
México, Tuxtla Gutiérrez 1926 – Cidade do México 1999
Trad. José Bento
in Rosa do Mundo – 2001 poemas para o futuro
Editor: Assirio & Alvim
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Fleur Adcock: Mulher para Marido

Da ira para o poço do sono
Deslizas de repente. A calma
Cai em mim gradualmente, um nevão
Suave, uma capa leve para atordoar
Os nervos arrepanhados, durante algum tempo.

A tua cabeça na almofada virada para o outro lado;
A minha cara escondida. Mas debaixo da neve
Rebentos endireitam-se, o filamento verde
Ergue-se instintivamente. Não se duvide
Dessa virtude de determinação na carne insciente:
Entre os nossos corpos uma tepidez cresce;
As mãos mexem-se debaixo dos cobertores,
As tuas costas tocam o meu peito, as nossas coxas
Rodam para encontrar o lugar que conhecem.
A tua boca move-se sobre a minha cara:
Ousaremos, agora, abrir os olhos?



Fleur Adcock
Nova Zelândia, Auckland 1934
Trad. José Alberto Oliveira
in Rosa do Mundo – 2001 poemas para o futuro
Editor: Assirio & Alvim
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António Feijó: Moiro e Cristã


O pobre moiro enamorou-se
De Ely, moça cristã, sendo filho do Emir...
Tamanha dor sentiu, que o mísero exilou-se,
Como se alguém pudesse à própria dor fugir!

Longe, na terra alheia, abrasa-lhe a memória
A imagem da mulher que a vida lhe prendeu,
Vendo-a morta, a sorrir sob um nimbo de glória,
Mas no esplendor de um céu que nem mesmo era o seu...

Por sua vez, Ely nunca pôde esquecê-lo,
E nesse imenso amor, com presságios de agoiro,
Sentia-se morrer, como um lírio no gelo,
Sem o doce luar dos seus olhos de moiro...

Mas no instante supremo, ambos crentes, temendo
Que a Morte os separasse, em tão opostos céus,
Ele invocou Jesus, cheio de fé, morrendo;
E a cristã murmurou: «Alá! só tu és Deus!»





António Feijó
Portugal, Ponte de Lima 1859 – Suécia, Estocolmo 1917
in “ Sol de Inverno “ seguido de vinte poesias inéditas
Introd. Álvaro Manuel Machado
Editor: Imprensa Nacional-Casa da Moeda
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António Feijó: A resposta do árabe




















«De que país és tu?» -- A um árabe dizia
Sahid, filho d'Agbá, na estrada, ao fim do dia.

Era a hora em que o sol se fecha no Ocidente
Como o olhar moribundo e triste d'um doente.

E o árabe respondeu, banhado na piedosa
Claridade da luz, quase religiosa:

-- «Sou da raça que tem o excepcional fervor
D'amar eternamente e de morrer d'amor.» --

-- «Então és tu de Asrá.»-- acrescentou Sahid;
-- «Sim, por Caaba! Foi essa a tribo onde eu nasci.»

E de novo Sahid o interrogava atento:
-- «Por que motivo, pois, tão nobre sentimento

Nunca se muda em vós n'uma paixão nefasta? »--
O crepúsculo enchia o céu meio estrelado,
E o árabe tornou, como que iluminado:
-- «Porque a mulher é bela e a juventude é casta!»




António Feijó
Portugal, Ponte de Lima 1859 – Suécia, Estocolmo 1917
in “ Sol de Inverno “ seguido de vinte poesias inéditas
Introd. Álvaro Manuel Machado
Editor: Imprensa Nacional-Casa da Moeda
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António Feijó: Princesa Encantada


























Formosa Princesa dormia há cem anos;
 Dormia ou sonhava... Ninguém o sabia.
 Passavam-se os dias, passavam-se os anos,
 E a linda Princesa dormia, dormia,
     Dormia há cem anos!

 Em torno, sentadas, dormiam as Damas,
 Cobertas de joias, cobertas de lhamas;

 Com formas e aspectos de finas imagens,
 Esbeltos e loiros, dormiam os pajens.

 E ás portas de bronze, por terra alabardas,
 Num sono profundo dormiam os guardas.

 Lá fora, na sombra dos parques discretos,
 Nem aves gorjeiam, nem zumbem insectos.

 As arvores sonham, na sombra dos poentes,
 Imóveis, à beira dos lagos dormentes.

 E as fontes que d'antes sonoras gemiam,
 Sonâmbulas mudas, apenas corriam...

 Um dia, de longe, de terras distantes,
 Com pajens, arautos, donzéis, passavantes,

 Bandeiras ao vento, clarins, atabales,
 Ecoando a distancia por montes e vales,

 --Um príncipe, herdeiro d'um trono potente,
 Com olhos suaves d'aurora nascente,

 Excelso e formoso, magnânimo e moço,
--Correndo aventuras, num grande alvoroço,

 Chegou ao Castelo, que ha tanto dormia,
 Como uma alvorada, prenuncia do dia...

 E ao ver a princesa, sentada em seu trono,
 Naquele profundo, extático sono,

 Tomado d'estranha, indizível surpresa,
 Na boca entreaberta da linda Princesa,

 Tremendo e sorrindo, seu lábio colou-se
 N'um beijo, que ao lábio a alma lhe trouxe.

 Acorda a Princesa; despertam as Damas,
 As faces ardentes, os olhos em chamas.

 Despertam os Pajens, nos seus escabelos,
 Com halos de fogo nos loiros cabelos.

 Acordam os guardas; e, tudo desperto,
 A vida renasce no parque deserto.

 Suspiram as fontes; gorjeiam as aves,
 Das áleas profundas nas sombras suaves.

 As arvores tremem, no ar transparente,
 Á brisa que sopra, como hálito ardente.

 Nas torres, os sinos repicam de festa;
 O povo em coreias enchia a floresta...

 E a linda Princesa, seus olhos fitando
 No Príncipe excelso, sorrindo e corando,

--« Sonhava contigo...» Porque é que tardaste?
 Mas já nesse instante, formando contraste,

 Quando isto dizia, erguendo-se a medo,
 A voz parecia trair o segredo

 De quem, num relance, talvez lamentasse
 Que sonho tão lindo tão cedo acabasse!...

 A linda Princesa sonhava há cem anos,
 E fora do Sonho só há desenganos...



António Feijó
Portugal, Ponte de Lima 1859 – Suécia, Estocolmo 1917
in “ Sol de Inverno “ seguido de vinte poesias inéditas
Introd. Álvaro Manuel Machado
Editor: Imprensa Nacional-Casa da Moeda
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António Feijó: O romance da pastora linda





A linda Pastora, guardando o seu gado,
Andava esquecida num alto montado.

E o Rei, que voltava, sombrio, da caça,
Com seus falcoeiros e galgos de raça,

Detém-se, pensando, de súbito, ao vê-la,
Em ermo tão alto, que fosse uma estrela.

-- «Oh linda Pastora dos olhos castanhos,
Que passas a vida guardando rebanhos!

A tua beleza deslumbra os meus olhos,
Como uma tulipa no meio de abrolhos.

Teus lábios parecem cerejas vermelhas,
E a pele é mais fina que a lã das ovelhas.

Sobre o oiro das tranças, tuas faces tão puras
São duas papoilas em searas maduras.

Estrela ou Pastora, se queres ser minha,
Terás as riquezas que tem a Rainha!»

-- «A flor dos valados é sempre modesta
E a humilde zagala presume de honesta.»

-- «Terás equipagens, palácios, castelos,
E joias a arderem nos fulvos cabelos;

Um trono de esmaltes em oiros maciços,
Lacaios, escravos, fidalgos submissos!...»

-- «Às vossas riquezas, perdidas nos montes,
Prefiro mirar-me no espelho das fontes;

As joias, que valem, se eu guardo o meu gado,
Com rubras papoilas a arder no toucado?...

De nada me servem fidalgos, escravos,
Pois tenho as abelhas e o mel dos meus favos.

Segui vosso rumo, que a tarde caminha;
Guardai as riquezas que são da Rainha».

-- «Não rias, vaidosa, das minhas promessas,
Que a forca tem visto mais lindas cabeças...»

-- «Talvez que mais lindas já visse pender,
Mas nunca tão firme nenhuma há-de ver,

Que a Virgem Santíssima, a Virgem clemente,
Ampara, sorrindo, quem morre inocente,

E os anjos, descendo do céu a voar,
Á forca viriam minha alma buscar!»

E a linda Pastora, que a ser ultrajada
A morte prefere,--vai ser enforcada!

Levaram-na, á força, das suas ovelhas,
Pendendo-lhe ás tranças papoilas vermelhas,

Com gritos de escárnio, no meio da turba...
Mas nada os seus olhos serenos perturba.

E toda inundada na luz que irradia,
Sorrindo, os estrados da forca subia...

Então, n'um relance, do azul transparente,
Surgindo mais alvas que a lua nascente,

Duas pombas que descem e voam a par,
Nos braços da forca vieram poisar...

E a linda Pastora dos olhos castanhos,
Tão longe da serra, cercada de estranhos,

Sem ter um gemido, sem ter um lamento,
Expira na forca... Mas nesse momento,

No grande silencio que a morte causara,
Aos olhos de todos que atónitos viram
Tão grande prodígio, coragem tão rara,
Dos braços da forca--três pombas partiram!



António Feijó
Portugal, Ponte de Lima 1859 – Suécia, Estocolmo 1917
in “ Sol de Inverno “ seguido de vinte poesias inéditas
Introd. Álvaro Manuel Machado
Editor: Imprensa Nacional-Casa da Moeda
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Ana Salomé: nos dias em que chegas a casa triste

nos dias em que chegas a casa triste
o meu corpo é triste para que nada te fira
nos dias em que chegas a casa triste
sou só corpo com meias tontas até aos joelhos
um corpo nu  no medo claro da noite
os seios no redondo azul da tua esfera
e a sombra deles na parede do quarto.
nos dias em que chegas a casa triste
sou uma salomé no desassossego do licor,
o teu lado esquerdo com um sexo de flores,
a ternura somente insuportável
de te saber triste sem te poder tocar.



Ana Salomé
Portugal, Lisboa 1982
in Os dias do amor
Editor: Ministério dos livros
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Paulo Ferraz: Alba

Não a resistência
do vento, mas sim a
densidade da água
que envolve, que agarra o
corpo, inoculando o
veneno da espera até
transformar pele em
pensamento, menos,
em vozes ouvidas,
outras jamais ditas;
o que se vê tem do
sonho quase nada, apenas
o desejo de tê-la outra vez
à distância dos dedos,
ela estaria próxima,
não fosse a grita
do mundo e do corpo,

não fosse esse oriente,
não fosse essa música
que vem das árvores,
não fosse ouvir do
colchão, do lençol, do
travesseiro: volta ao

real, ao invés do leito
te reclama a lida.



Paulo Ferraz
Brasil, Rondonópolis 1974
in Os dias do amor
Editor: Ministério dos livros
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José Rui Teixeira: Cada instante é um lugar perdido























Cada instante é um lugar perdido em que te entregas
à passagem do tempo. A juventude é um vício
que perdemos inevitavelmente. Dizes: é breve o amor,
efémera a vida.

                  Somos uma estância museológica,
algo anacrónico que aprende a perdurar por medo
de morrer. Toca-me, conjuga um verbo que conheças
no presente do indicativo, soletra-o na segunda pessoa
do singular ao meu ouvido, dá-me qualquer coisa
que me pareça eterno.

Basta-me que o teu olhar me encontre.



José Rui Teixeira
Portugal, Porto 1974
in Para Morrer
Editor: Quasi Edições
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Joaquim Pessoa: Canção de Amélia dos olhos doces

Amélia dos Olhos Doces
quem é que te trouxe
grávida de esperança?
Um gosto de flor na boca.
Na pele e na roupa
perfumes de França.

Cabelos cor de viúva.
Cabelos de chuva.
Sapatos de tiras
e pões, quantas vezes
não queres e não amas
os homens que dormem
contigo na cama.

Amélia dos Olhos Doces
quem dera que fosses
apenas mulher.
Amélia dos Olhos Doces
se ao menos tivesses
direito a viver!

Amélia gaivota
amante ou poeta.
Rosa de café.
Amélia gaiata
do Bairro da Lata.
Do Cais do Sodré.
Tens um nome de navio.
Teu corpo é um rio
onde a sede corre.
Olhos Doces. Quem diria
que o amor nascia
onde Amélia morre?

Cabelos cor de viúva.
Cabelos de chuva.
Sapatos de tiras
e pões, quantas vezes
não queres e não amas
os homens que dormem
contigo na cama.




Joaquim Pessoa
Portugal, Barreiro 1948
in 125 poemas – Antologia Poética
Editor: Litexa
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