Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

21 de abril de 2015

Meu amor tem meu coração, eu tenho o seu: Philip Sidney



Meu amor tem meu coração, eu tenho o seu,
Em troca justa, um pelo outro estão.
O meu está com ele, em mim o que ele me deu,
Nunca se arranjou uma melhor transacção.
Seu coração em mim os dois une agora,
Nele, o meu guia sentidos e pensamento;
Ele ama meu coração que foi seu outrora,
Acarinho o seu porque em mim tem aposento.
Foi ao vê-lo que o seu coração feri,
Meu coração foi f’rido pla sua ferida;
Dele ferido, a sua dor reacendi,
E assim em mim sua dor faz mais dorida.
Ambos f’ridos, a troca ventura nos deu:
Meu amor tem meu coração, eu tenho o seu.


Philip Sidney
(England 1554-1586)
in Os dias do Amor
photo by Google

Cesário Verde: A débil


Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.


Sentado à mesa dum café devasso,
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.


E, quando socorreste um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.


« Ela aí vem!» disse eu para os demais;
e pus-me a olhar, vexado e suspirando,
o teu corpo que pulsa, alegre e brando,
na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, - talvez que o não suspeites! -
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça;
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.

Adorável! Tu, muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.

Sorriam, nos seus trens, os titulares;
E ao claro sol, guardava-te, no entanto,
A tua boa mãe, que te ama tanto,
Que não te morrerá sem te casares!

Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma família, um ninho de sossego,
Desejava beijar sobre o teu peito.

Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.

« Mas se a atropela o povo turbulento!
Se fosse, por acaso, ali pisada!»
De repente, paraste, embaraçada
Ao pé dum numeroso ajuntamento.

E eu, que urdia estes fáceis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Uma pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.

E foi, então, que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.


Cesário Verde
(Portugal 1855 – 1866)
in Poesia completa e cartas
Editor: Mel Editores
photo by Google

David Mourão-Ferreira: Soneto do amor difícil


A praia abandonada recomeça
logo que o mar se vai, a desejá-lo:
é como o nosso amor, somente embalo
enquanto não é mais que uma promessa...

Mas se na praia a onda se despedaça,
há logo nostalgia duma flor
que ali devia estar para compor
a vaga em seu rumor de fim de raça.

Bruscos e doloridos, refulgimos
no silêncio de morte que nos tolhe,
como entre o mar e a praia um longo molhe
de súbito surgido à flor dos limos.

E deste amor difícil só nasceu
desencanto na curva do teu céu. 

David Mourão-Ferreira
Portugal (Lisboa) 1927-1996
in Obra Poética
Editor: Editorial Presença
photo  by Google

18 de abril de 2015

Diogo Bernardes: Onde porei meus olhos que não veja



Onde porei meus olhos que não veja
A causa, donde nasce meu tormento?
A que parte irei co pensamento
Que para descansar parte me seja?


Já sei como s’engana quem deseja,
Em vão amor, firme contentamento:
De que nos gostos seus, que são de vento,
Sempre falta seu bem, seu mal sobeja.


Mas inda, sobre claro desengano,
Assim me traz est’alma sogigada,
Que dele está pendendo o meu desejo;


E vou de dia em dia, de ano em ano,
Após um não sei quê, após um nada:
Que, quanto mais me chego, menos vejo.






Diogo Bernardes
Portugal 1520-1605
in Poemas de Amor
Antologia de Poesia Portuguesa
Editor: Publicações D. Quixote
photo by Google

16 de abril de 2015

Fernando de Herrera: Eu vi uns belos olhos


Eu vi uns belos olhos que renderam
com doce flecha  um coração magoado,
e que, para acender novo cuidado,
 a sua força contra mim puseram.


Eu vi, que muitas vezes prometeram
remédio ao mal, que sofro não cansado;
 e que, quando esperei vê-lo acabado,
pouco minhas esp’ranças me valeram.


Eu vejo que se escondem já meus olhos
e cresce a minha dor e levo ausente
o golpe f’roz no peito, sem socorro.


Eu vejo que se perdem os despojos
e a lembrança de meu bem presente.
 e em cego engano de esperanças morro.



Fernando de Herrera
Espanha (Sevilha) 1534-1597
in” Antologia da Poesia Espanhola
Siglo de Oro – 1ºvol. Renascimento”
Tradução: José Bento
Editor: Assirio & Alvim
photo by Tutt’ Art

Antero de Quental: A uma mulher



Para tristezas, para dor nasceste.
Podia a sorte pôr-te o berço estreito
N'algum palácio e ao pé de régio leito,
Em vez d'este areal onde cresceste:

Podia abrir-te as flores — com que veste
As ricas e as felizes — n'esse peito:
Fazer-te... o que a Fortuna há sempre feito...
Terias sempre a sorte que tiveste!

Tinhas de ser assim... Teus olhos fitos,
Que não são d'este mundo e onde eu leio
Uns mistérios tão tristes e infinitos,

Tua voz rara e esse ar vago e esquecido,
Tudo me diz a mim, e assim o creio,
Que para isto só tinhas nascido! 








Antero de Quental
Portugal 1842-1891
in Sonetos
Editor: Publicações Europa-América 
photo by Google

11 de abril de 2015

Filipe Marinheiro: ouço de perto o marulhar do mar


























ouço de perto o marulhar do mar e todo o mar se escancara
dentro das minhas veias modulares

os meus olhos a tocarem no crepúsculo marítimo afundam-se
no seu sangue cheio de palavras velhas e novas
– tudo a mesma merda!

entretanto perco as feridas que as altas ondas de fogo queimaram
impassivelmente contaminando as noites voadoras

e as pedras de barro ampliam a ausência contaminante
do meu rosto derrubado pelas paisagens vazias e côncavas

depois com desejo colossal
trepo as tuas coxas com sabor a estrelas do mar

desperto a fera erótica existente entre pernas e sonho beijar-te
a húmida cona marítima e vens-te só de pensar nisso...



Filipe Marinheiro
Portugal » Coimbra 1982
in Noutros Rostos
Editor: Chiado Editora
photo by Google

Filipe Marinheiro: soube de ter um amor fácil...


soube de ter um amor fácil como a rasgar a língua
duma pedra de hélio

era assim que olhava interminavelmente
as montanhas a arder
enquanto dormiam um longo medo
logo pela manhã cerrada adentro…

noite com febre suja que pela raíz parece um cometa
a dançar bêbado

ou por outro tenho um amor paciente a estancar esta
difícil e ardorosa paixão que canta no fundo do sexo

até então despertar numa noite escaldante e
inexplicavelmente húmida…



Filipe Marinheiro
Portugal > Coimbra 1982
in Noutros Rostos
Editor: Chiado Editora
photo by Google

Filipe Marinheiro: em cima da boca sedutora...































em cima da boca sedutora e doce
e a garganta em chaga aniquila todos
os espinhos e pérolas
desaparecendo-os
um por um
destes movimentos muito quentes
estrangulando-se sem memória nem coração



Filipe Marinheiro
Portugal > Coimbra 1982
in Noutros Rostos
Editor: Chiado Editora
photo by Google

9 de abril de 2015

Pedro Correia Garção: Queixas de Amor



























De beijos um cestinho Amor enchia,
E, depostos os duros passadores,
Quais semeiam o trigo os lavradores
Num campo os semeou todos um dia.

Daí a pouco com prazer se via
A seara toda a ferver toda em Amores,
Que aos lentos rebentava, entre as flores,
De que o travesso deus folgava e ria.

Eu que bem por acaso até bem me achava,
Um deles colho, e sobre o peito o prendo,
Sem recear o mal que me aguardava:

Pois as tensas raízes estendendo,
Pouco a pouco no coração mas crava
De onde novos amores vão nascendo.


Pedro Correia Garção
Portugal » Lisboa 1724-1772
photo by Google 

Pedro Chagas Freitas: Troco uma vida de orgasmos...



Troco uma vida de orgasmos pelo orgasmo de uma vida.
Há quase uma felicidade em cada minuto sem ti,
e até o prazer acontece sem que eu me venha com ele.
Os mais cerebrais pedem-me contenção, pedem-me
anulação. Mas não se pode conter o que nos faz querer.
Não se pode conter o que nos faz viver. E se a vida
existe e para que te seja assim, para que alguém,
um dia, possa ser assim de alguém. 


Pedro Chagas Freitas
Portugal » Azurém; Guimarães 1979
in Prometo falhar
Editor: Marcador
photo by Google


6 de abril de 2015

Francisco de Aldana: Mil vezes digo...

     Mil vezes digo, ao ser abraçado
por Galateia, que é mais que o sol formosa,
e ela, olhando-me doce e desdenhosa,
murmura: « Tírsis meu, está calado.»
     Eu quero-lho jurar, entusiasmado,
e ela, encendida num matiz de rosa,
com um beijo mo impede, e pressurosa
tapa-me a boca com seu gesto amado.
     Com branda força, procuro soltar-me,
e ela afasta-me mais e diz-me logo:
« Não o jures, pois crer em ti me apraz.»
     Depois com tanta força encadear-me
tenta que Amor, presente ao doce jogo,
num desejo com obras satisfaz.


Francisco de Aldana
Espanha 1537-1577
in” Antologia da Poesia Espanhola
Siglo de Oro – 1ºvol. Renascimento”
Tradução: José Bento
Editor: Assirio & Alvim
photo by Tutt’ Art

David Mourão-Ferreira: Rangia entre nós dois




Rangia entre nós dois a música da areia
como se fosse Agosto a dedilhar um sistro
Agora está fechada a casa onde te amei
onde à noite uma vez devagar te despiste

Floresça o clavicórdio em pleno mês de Outubro
Na harpa de Setembro entrelaçou-se a vinha
A que vem de repente entre os dois este muro
feito de solidão de sal de marés vivas

Podia conjurar-te a que não me esquecesses
mas é longe do Mar que os navios são tristes
De que serve o convés com a sombra das redes

Quis a tua nudez  Não quis que te despisses



David Mourão-Ferreira
Portugal (Lisboa) 1927-1996
in 366 poemas que falam de amor
Selecção: Vasco Graça Moura
Editor: Quetzal Editores
photo by Google

Manuel Alegre: As facas





Quatro letras nos matam quatro facas
que no corpo me gravam o teu nome
Quatro facas amor com que me matas
sem que eu mate esta sede e esta fome.

Este amor é de guerra. (De arma branca)
Amando ataco amando contra-atacas
este amor é de sangue que não estanca
Quatro letras nos matam quatro facas.

Armado estou de amor. E desarmado.
Morro assaltando morro se me assaltas
e em cada assalto sou assassinado.

Quatro letras amor com que me matas.
E as facas ferem mais quando me faltas.
Quatro letras nos matam quatro facas.



Manuel Alegre
Portugal (Águeda) 1936
in Obra Poética
Editor: Publicações D. Quixote

photo by Google

Manuel Alegre: Na tua pele a terra treme






























Na tua pele toda a terra treme
alguém fala com Deus alguém flutua
há um corpo a navegar e um anjo ao leme.

Das tuas coxas pode ver-se a Lua
contigo o mar ondula e o vento geme
e há um espírito a nascer de seres tão nua…


Manuel Alegre
Portugal (Águeda) 1936
in Obra Poética
Editor: Publicações D. Quixote
photo by Google

Francisco de La Torre: Bela minha ninfa é



     Bela minha ninfa é, se os laços de ouro
ao tranquilo vento desordena;
bela, se de seus olhos aliena
o altivo desdém que sempre choro;
     bela se com a luz que, única, adoro
a tormenta do vento e mar serena;
bela, se ao amargor da minha pena
devolve as graças do celeste coro.
     Bela se mansa, bela se terrível,
bela se cruel, bela esquiva, e bela
se torna a luz do céu grave clarão.
     Cuja beleza humana e aprazível
nem se pode saber o que é sem vê-la,
nem, vista, se compreende o que é o chão.



Francisco de La Torre
Espanha (Madrid) 1534-1594
in” Antologia da Poesia Espanhola
Siglo de Oro – 1ºvol. Renascimento”
Tradução: José Bento
Editor: Assirio & Alvim

photo by Tutt’ Art

Luiza Neto Jorge: Baixo-Relevo


Tu e eu
só estátuas de amanhã
Não temos na mão a flor
um livro uma espingarda
uma cadeira gasta onde morrer
E sem o monstro gótico apunhalado aos pés

(Todos os sonhos são de pedra ou bronze
não os meus de palha ou de papel)


Tu e eu
baixo-relevo
vendidos tocados expostos em vida
perseguidos pelos milionários
e pelos mortos talvez que invadiram já
o pedestal das estátuas

Tu e eu
elípticos de sexo
ontem gritada no teu peito
hoje secreto no meu ventre


deserdados da sombra
já sem gesto
escultura de amanhã


Luiza Neto Jorge
Portugal (Lisboa) 1929-1989
in Poesia 1960-1989
Editor: Assirio & Alvim
photo by Google

Manuel Alegre: Gostava de morar na tua pele



Gostava de morar na tua pele
desintegrar-me em ti e reintegrar-me
não este exílio escrito no papel
por não poder ser carne em tua carne.

Gostava de fazer o que tu queres
ser alma em tua alma em um só corpo
não o perto e o distante entre dois seres
não este haver sempre um e sempre o outro.

Um corpo noutro corpo e ao fim nenhum
tu és eu e eu sou tu e ambos ninguém
seremos sempre dois sendo só um.

Por isso esta ferida que faz bem
este prazer que dói como outro algum
e este estar-se tão dentro e sempre aquém.


Manuel Alegre
Portugal (Águeda) 1936
in Obra Poética
Editor: Publicações D. Quixote
photo by Google

Manuel Alegre: Poema do eterno retorno

























Há o teu rosto dentro do teu rosto: único e múltiplo.
As tuas mãos de outrora nas tuas mãos de agora
Há o primeiro amor que é sempre o último
antes do tempo ou só depois da hora.

E vinhas de tão longe. E era tão fundo.
Eu conheço-te. E era por mim. E era por ti. E era por dois.
E havia na tua voz o princípio do mundo.
E era antes da Terra. E era depois.


Manuel Alegre
Portugal (Águeda) 1936
in Obra Poética
Editor: Publicações D. Quixote
photo by Google

Fernando Assis Pacheco: Seria o amor português

Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me importa?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve. 



Fernando Assis Pacheco
Portugal (Coimbra) 1937-1995
in Poemas de Amor
Antologia de Poesia Portuguesa
Org: Inês Pedrosa
Publicações D. Quixote
photo by Google