Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

26 de janeiro de 2014

Raízes: Carlos Pessoa Rosa

enfio
meu pau em sua vagina
enraízo
sou falo
és a terra de minhas raízes
a nutrir o gozo
sou tronco
enfiado na terra de seu corpo
sou raiz
és o solo
eu apenas o agregado
és chupa
onde deposito minhas sementes
vestígios
que escoam na geratriz


Carlos Pessoa Rosa
Brasil 1949
photo by Google

19 de janeiro de 2014

À sua esquiva amada: Andrew Marvell

     Se tempo e mundo tivéssemos de sobra,
Seres esquiva, não era crime, Senhora,
Sentávamo-nos os dois, e depois se via
Como dois namorados passavam o dia.
Tu, junto do Ganges descobrindo rubis,
Eu, junto do Humber queixando-me, infeliz.
Vem de antes do Dilúvio o meu amor,
Que tu deverás recusar, se faz favor.
E até, Senhora, à conversão dos Judeus,
Assim se manterão os sentimentos teus.
Meu amor é como uma planta que aumenta,
Maior que um império, mas a crescer mais lenta.
E com mais uns cem anos eu ainda conte
Pra louvar teus olhos e admirar-te a fronte.
Duzentos anos irão para cada seio
E trinta mil para aquilo que não nomeio.
Pra outras partes, pelo menos uma vida,
E mais outra pelo teu coração repartida.
Senhora, este estado é de teu merecimento,
Nem eu te amaria a ritmo mais lento.
     Mas, constante, por detrás da minha cabeça,
O carro do tempo alado já se apressa,
E longe, à nossa frente, logo se abre
A desértica vastidão da eternidade.
Tua beleza procurar-se-á em vão
E em teus salões não mais ecoarão
Meus versos; a virgindade sempre defendida,
Pelos vermes, finalmente será vencida.
Tua estranha honra será pó, e prevejo
Que em cinzas se transforme meu desejo.
A campa é um belo, secretíssimo espaço,
Que não dá, todavia, para um abraço.
     E agora que a tua pele louçã
Jovem brilha como o orvalho da manhã,
E quando tua alma ansiosa se pressente
Em cada poro da pele em fogo ardente,
Brinquemos enquanto há tempo ainda,
E como amorosas aves de rapina
O nosso tempo antes vivamos vorazes
Do que lentos definhemos em suas fauces.
     E rolemos depois, com todo o vigor,
Numa bola de doçura, o nosso amor.
Vão nossos prazeres de forma decidida
Rompendo pelos portões de ferro da vida.
Se nós não o pudermos parar, todavia,
Faremos nosso sol correr em cada dia.


Andrew Marvell
(England 1621-1678)
in Os dias do Amor
photo by Google

Sem tudo saber: Daniel Costa-Lourenço



Tenho-te só para mim, sem saber quem és,
Incondicionalmente, mesmo que nada acordado,
Mesmo que só agora, assim que te conheci,
Como queres, como pedes, como eu quero, como gemes,
Como esqueces e insinuas um outro “nós”, que não este,
Queimando etapas, preliminares, pressupostos,
Gozando cada subversão, cada dogma, cada proibição,
Subindo, descendo, percorrendo letras, palavras, frases,
Entrando, percorrendo a tua invisível satisfação no escuro,
Agarrando, observando, segurando, possuindo, latejando
Como se o mundo estivesse nestas mãos,
O desejo libertando-se, brilhando, claro como a lucidez de todos os momentos,
Mesmo com a tua imensa vertigem ácida,
Que te faz esquecer a desolação de amanhã,
Queimando-se nos estilhaços esquecidos que fizeram esta noite.

Uso-te, sabendo que me usas, mesmo sem saber quem és.


Daniel Costa-Lourenço   "in Heróis - Chiado Editora"
Portugal 1976
photo by Google                       "Poema cedido por: Hugo Oliveira"


18 de janeiro de 2014

Se por dar lustre aos pesares: Soror Madalena da Glória





Se por dar lustre aos pesares
Vossas lágrimas teimosas
Correm por margens de rosas,
Porque não cabem nos mares,
A submergir esses ares
subiam rios crescendo,
E certo o naufrágio sendo,
A fineza deslustrais,
Porque podendo amar mais,
Deixareis de amar morrendo.

Deixai que o mar se dilate,
Que o rio se precipite,
Que o vento se fortifique,
Que em água a nuvem desate,
Sem que vós neste combate
Balas de neve esgrimindo,
Que as estrelas vão ferindo,
De neve e fogo tomeis
As armas com que ofendeis,
De amor os raios cobrindo.


Soror Madalena da Glória
(Portugal 1672-1759)
photo by Google

Como queiras, Amor... : Jorge de Sena


Como Queiras, Amor... Como queiras, Amor, como tu queiras.
Entregue a ti, a tudo me abandono,
seguro e certo, num terror tranquilo.
A tudo quanto espero e quanto temo,
entregue a ti, Amor, eu me dedico.

Nada há que eu não conheça, que eu não saiba,
e nada, não, ainda há por que eu não espere
como de quem ser vida é ter destino.

As pequeninas coisas da maldade, a fria
tão tenebrosa divisão do medo
em que os homens se mordem com rosnidos
de malcontente crueldade imunda,
eu sei quanto me aguarda, me deseja,
e sei até quanto ela a mim me atrai.

Como queiras, Amor, como tu queiras.
De frágil que és, não poderás salvar-me.
Tua nobreza, essa ternura tépida
quais olhos marejados, carne entreaberta,
será só escárneo, ou, pior, um vão sorriso
em lábios que se fecham como olhares de raiva.
Não poderás salvar-me, nem salvar-te.
Apenas como queiras ficaremos vivos.

Será mais duro que morrer, talvez.
Entregue a ti, porém, eu me dedico
àquele amor por qual fui homem, posse
e uma tão extrema sujeição de tudo.

Como tu queiras, meu Amor,
                         como tu queiras.

Jorge de Sena                         “in Antologia Poética – Guimarães Editores”
Portugal 1919-1978
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