Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

30 de novembro de 2014

Eugénio de Andrade: Sobre as ervas


Respiras
como se pela garganta
deslizasse todo o azul de Espanha
a noite
a língua do vento
sem outras mãos
outros olhos
para beber no escuro
Deita-te
sobre o meu peito
inclina
         até ao chão
as frágeis
hastes da beleza.
As palavras
onde te escondes
altas
     passam
passam as águas
dóceis
do verão
É tempo
já as amoras sangram
é tempo ainda
abre-me as portas do teu corpo
ó meu amor
deixa-me entrar.
Já sobre ti
de aroma em aroma
os lábios todos
                           caem
nupciais ou mortais os corpos
são para penetrar
                         lenta
                         oh
                         lentamente.
As mãos
sobre a nuca
delicadas.
Sobre as ervas
o leite
espesso do silêncio.



Eugénio de Andrade
Portugal (Castelo Branco) 1923-2005
in Véspera de Água
Editor: Assirio & Alvim
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Ildásio Tavares: In Extremis


Quando eu morrer e reverter ao chão,
     não profiram discursos nem louvores:
     se acaso tive glória ou tive amores,
     não sepultem o passado em meu caixão.
Não quero missa, prece ou oração;
    nem sufoquem meu corpo sob flores;
     não levem ao cemitério pranto ou dores,
     quer seja de saudade ou de paixão.
Recitem versos, cantem melodia-
     não fui senão poeta em minha vida,
     girando dentro de mim qual caracol.
Terei mais luz no derradeiro dia
     um cruel esplendor na despedida:
     poesia enchendo o tumulo de sol.


Ildásio Tavares
Brasil (Gongogi) 1940
            (Salvador) 2010
in Antologia de Poetas Brasileiros
Seleção: Mariazinha Congílio
Editor: Universitária Editora
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Aluysio Mendonça Sampaio: O Relógio

No silêncio da noite insone
o relógio é o coração do tempo
pulsando.

Som metálico incessante,
do átimo que passa,
eis a cadência marcial
para o nada.

Belo é o fluir da vida
o desabrochar da flor
pletora de luz
ao despontar de sóis.

No ventre da vida
germina a morte
saliente, constante
lâmina cortante do tempo.

Pudéssemos parar o coração das eras!
O nosso instante - eterno.
O nosso amor - perene.
Ah! Maldito relógio
consciência do efémero
por que não cessas de bater
o ritmo monótono monocorde
do minuto que passa?

Deixe-me ficar no instante
- minha eternidade.


Aluysio Mendonça Sampaio
Brasil (Sergipe) 1926
          São Paulo 2008
in Antologia de Poetas Brasileiros
Seleção: Mariazinha Congílio
Editor: Universitária Editora
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Leonor Scliar-Cabral: Iemandite



Emerge em névoa e balança os seios
e sobre a espuma a flotar em flocos
repete múrmura ao seu amante:
Vem, meu amado.

conduz-me firme, a cintura e cinge,
mistura o sémen ao sal e às algas
e ao vai-e-vem em transporte singra,
mar que me afoga

Morrer eu quero, morrer de amor,
fluctivagando corcéis fogosos,
colhendo salvas recém jogadas
como oferenda

por quem da praia lançou-me rosas.
O espinho sangra e os deuses choram.
Serão eternas tão breves as ondas
e o seu marulho.


Leonor Scliar-Cabral
Brasil (Porto Alegre) 1929
in Antologia de Poetas Brasileiros
Seleção: Mariazinha Congílio
Editor: Universitária Editora
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22 de novembro de 2014

Ildásio Tavares: Soneto Pastoral

Estas rugas que vejo no teu rosto
cicatrizes do tempo e da esperança
são saudades marcadas na criança,
sol nascente tornando-se sol posto.

Este tempo que em rugas escreveu
uma história de lágrimas e de riso,
purgatório que faz-se paraíso;
uma vida que nunca arrefeceu.

Este rosto sereno que me fita
tão distante dos sonhos do passado
é um espelho partido e remendado,

retalhos de prazer e de desdita!
Estas rugas, teu rosto, cicatrizes
são mágoas que desaguam sem raízes.


Ildásio Tavares
Brasil (Gongogi, Bahia) 1940
                   Salvador          2010
in Antologia de Poetas Brasileiros
Seleção: Mariazinha Congilío
Editor: Universitária Editora
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21 de setembro de 2014

Aluysio Mendonça Sampaio: Esperança


de tanto pisar os caminhos do mundo
os meus pés estão sangrando
e o meu coração ferido
como o chão gretado

olhos fitos na distância
avanço
rumo à fímbria do horizonte

de meus lábios brota um canto
como uma flor
nascida no agreste de meu peito

meu coração está ferido
e contudo puro e livre
como o canto que brota de meus lábios
ou o orvalho antes de tocar a terra


Aluysio Mendonça Sampaio
Brasil (Sergipe 1926;
         São Paulo 2008
in Antologia de Poetas Brasileiros
Seleção: Mariazinha Congílio
Editor: Universitária Editora
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Idelma Ribeiro de Faria: A Virgem de Negro


No rosto a marca do eterno
na mão a lanterna bíblica
no peito uma rosa rubra
partiu em busca do Esposo
o casto o excelso o inefável.

Selou a boca ao sorriso
fechou o peito ao desejo
calçou sandálias de ferro
sob os pés de rosa e neve.

Silêncios cheios de assombro
povoaram-lhe a vigília.
Vagalhões de anseios morros
cavaram fundos abismos
em sua calma-superfície.

Perdeu-se por entre os astros.
O Esposo morava longe
daquela estrada de sal
daquele rio de areia
daquela praia esgotada.

Ergueu os olhos ao alto.
Não viu mais que a grande noite.

Exausta desceu à terra
para a renúncia final.

No rosto a marca do tempo
na mão a lâmpada extinta
no peito a rosa vermelha
agora fransfeita em cinza.




Idelma Ribeiro de Faria
Brasil (Rio Claro, São Paulo) 1914
in Antologia de Poetas Brasileiros
Seleção: Mariazinha Congílio
Editor: Universitária Editora

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1 de setembro de 2014

Mia Couto: mar me quer





















- O senhor pode ter sido acarinhado por mão, por lábio, por
      corpo, mas nenhuma carícia lhe devolve tanto a alma como a
        lágrima deslizando.

Mia Couto
Moçambique, Beira 1955
in mar me quer
Editor: Editorial Caminho

24 de agosto de 2014

Betty Vidigal: Paixão Via Internet



Com lupa te examino e me detenho
em pequenas minúcias do teu nome;
na falta de um rosto para dar-te
identidade e singularidade
analiso cada letra e seus detalhes.

Sim o recurso da pele, eletrizante,
ao alcance dos dedos para o toque,
encontro encanto nas teclas do teclado
e acaricio as letras mansamente.

Não posso, olhos nos olhos, rir contigo:
estendo-te asteriscos. Outros códigos
servem de ponte, ligação, liame.

De qualquer forma, humamos são humanos,
sujeitos sempre às mesmas reações: 
respiração alterada, mãos mais frias
e ao ver-te entrar na sala, certo dia,
disparou-me o coração no mesmo choque
da adolescente de joelhos trémulos
diante do seu principe encantado,
tentando parecer indiferente.


Betty Vidigal
Brasil (São Paulo)
in Antologia de Poetas Brasileiros
Seleção: Mariazinha Congílio
Editor: Universitária Editora
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Fernando Luís Sampaio: Epicentro






















A sua doce presença trovejava mentiras
Na alegria de nos vermos morria
o sonho de mais tarde nos encontrarmos
num abraço.

O que dizia era o contrário da luz
que se desprendia da sua figura. De uma vida
feita aos poucos, a tua boca
merecia outra constelação.

O disfarce das sombras
que se moviam no seu espírito servia
de epicentro para mais uma partida.

Sobrevivia aos solavancos, tentado a
escapar ao destino, espécie de porta
giratória entre o céu e o inferno.



Fernando Luís Sampaio
Moçambique 1960
in Falsa Partida
Editor: Assirio & Alvim
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3 de agosto de 2014

B. de Barros: Rapsódia de Ouro Preto

O ouro ja não se encontra
mais à flor da terra
em ouro preto. Eu sei.
Vagueei a noite inteira
pela praça imensa
suspensa das ladeiras,
Marilia não achei
por entre a multidão
de peregrinos uma pepita
um grão sobre o lajedo
uma faísca à luz
inconvincente não vislumbrei
Marilia de ouro preto
madeixas nas janelas.
Em tempos idos quando
meninos e cabritos moravam
nestes morros, as flores de ouro
preto rolaram pelas serras
deixando a sua ausência,
Marilia, à flor da terra
oculta em grupiaras no
seio de aluviões. Entretanto,
Marilia, nesta noite
de ausência, sob a ponte
de pedra, do mais fundo
o riacho cantava o meu amor
à flor da terra toda de ouro preto
presente em seu barroco resplendor.



B. de Barros
Brasil; São Paulo
in Antologia de Poetas Brasileiros
Seleção: Mariazinha Congílio
Editor: Universitária Editora
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2 de agosto de 2014

Pedro Chagas Freitas: Silêncio que se vai amar



Silêncio que se vai amar
Todos os amores começam assim. No silêncio de um olhar, no
silêncio de uma mão dependente da outra, de outra mão vadia
a vaguear pela cidade nocturna do teu corpo, no silêncio dos lábios
trincados, trocados, massajados, abraçados e voltados a abraçar.
Todos os amores são silêncio estendido.

E todos os silêncios merecem o amor.
                                                                                    (Excerto)


Pedro Chagas Freitas
Portugal;Azurém,Guimarães 1979
in prometo falhar
Editor: Marcador
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28 de julho de 2014

António Botto: A noite cai nos teus olhos


A noite cai nos teus olhos
De um verde malicioso
E há qualquer fluido que vai
Vibrando silencioso...

Inda é cedo. Mais um pouco.
─ Não vês como as rosas
Se mostram nitidamente?!
Mais um pouco...
Deixa que a noite dissolva
Tudo na mesma aparência
Que tem a minha tristeza
Quando tu andas distante
Ou vens pra ficar ausente!...

E teimas? ─ Pois bem: adeus!

Parece que te macei...

Mas fica; o dia vem longe;
Sim, não sejas indeciso...

Esquece que te beijei.



António Botto
Portugal (Concavada, Abrantes) 1897
Brasil (Rio de Janeiro) 1959
in Canções e outros poemas
Editor: Edições  Quasi
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António Botto: Anda, vem…


Anda vem... porque te negas,
Carne morena, toda perfume?
Porque te calas,
Porque esmoreces,
Boca vermelha ─ rosa de lume?

Se a luz do dia
Te cobre de pejo,
Esperemos a noite presos num beijo.

Dá-me o infinito gozo
De contigo adormecer
Devagarinho, sentindo
O aroma e o calor
Da tua carne, meu amor!

E ouve, mancebo alado:
Entrega-te, sê contente!
─ Nem todo o prazer
Tem vileza ou tem pecado!


Anda, vem!... Dá-me o teu corpo
Em troca dos meus desejos...
Tenho saudades da vida!

Tenho sede dos teus beijos!



António Botto
Portugal (Concavada, Abrantes) 1897
Brasil (Rio de Janeiro) 1959
in Canções e outros poemas
Editor: Edições  Quasi

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António Botto: Não é ciúme que eu tenho


Não é ciúme o que eu tenho,
É pena;
Uma pena
Que me rasga o coração.

Essa mulher
Nunca pode merecer-te;
Não vive da tua vida,
Nem cabe na ilusão
Da tua sensualidade.
- Mas é bela! Tu afirmas;
E eu respondo que te enganas.

A beleza –
Sempre foi
Um motivo secundário
No corpo que nós amamos;
A beleza não existe
E quando existe não dura.
A beleza –
Não é mais do que o desejo
Fremente que nos sacode...
- O resto, é literatura.

Conheço bem os teus nervos;
Deixaram nódoas de lume
Na minha carne trigueira;
- Esta carne que lembrava
Laivos de luz outonal,
Doirada, sem consistência,
A aproximar-se do fim...

Eu já conheço o teu sexo,
Tu já gostaste de mim!

A frescura do teu beijo
E o poder do teu abraço
- Tudo isso eu devassei...

Não é ciúme o que eu tenho;
Mas quando te vi com ela
- Sem que me vissem, chorei...


António Botto
Portugal (Concavada, Abrantes) 1897
Brasil (Rio de Janeiro) 1959
in Canções e outros poemas
Editor: Edições  Quasi

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António Botto: Andava a lua nos céus


Andava a lua nos céus
Com o seu bando de estrelas

Na minha alcova
Ardiam velas
Em candelabros de bronze.

Pelo chão em desalinho
Os veludos pareciam
Ondas de sangue e ondas de vinho.

Ele, olhava-me cismando;
E eu,
Placidamente, fumava,
Vendo a lua branca e nua
Que pelos céus caminhava.

Aproximou-se; e em delírio
Procurou avidamente
E avidamente beijou
A minha boca de cravo
Que a beijar se recusou.

Arrastou-me para Ele,
E encostado ao meu ombro
Falou-me de um pagem loiro
Que morrera de saudade
À beira-mar, a cantar...

Olhei o céu!

Agora a lua fugia,
Entre nuvens que tornavam
A linda noite sombria.

Deram-se as bocas num beijo,
─ Um beijo nervoso e lento...
O homem cede ao desejo
Como a nuvem cede ao vento.

Vinha longe a madrugada.

Por fim,
Largando esse corpo
Que adormecera cansado
E que eu beijara, loucamente,
Sem sentir, ─
Bebia vinho, perdidamente,
Bebia vinho..., até cair.


António Botto
Portugal (Concavada, Abrantes) 1897
Brasil (Rio de Janeiro) 1959
in Canções e outros poemas
Editor: Edições  Quasi
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António Botto: A noite, como ela vinha


A noite
─ Como ela vinha!
Morna, suave,
Muito branca, aos tropeções,
Já sobre as coisas descia,
E eu nos teus braços deitado
Até sonhei que morria.

E via ─
Goivos e cravos aos molhos;
Um cristo crucificado;
Nos teus olhos,
Suavidade e frieza;
Damasco roxo poído,
Mãos equálidas rasgando
Os bordões de uma guitarra,
Penumbra, velas ardendo,
Incenso, oiro, ─ tristeza!...
E eu, devagar, morrendo…

O teu rosto moreninho
─ Tão formoso!
Mostrava-se mais sereno,
E, sem lágrimas, enxuto;
Só beijámo-nos doidamente…
─ Era dia!


E os nossos corpos unidos
Como corpos sem sentidos,
No chão rolaram, e assim ficaram!


António Botto
Portugal (Concavada, Abrantes) 1897
Brasil (Rio de Janeiro) 1959
in Canções e outros poemas
Editor: Edições  Quasi
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