Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

21 de julho de 2013

Bom-Dia: John Donne


Espanta-me em verdade, o que fizemos, tu e eu
Até nos amarmos? Não estaríamos ainda criados
E, infantilmente, sorvíamos rústicos prazeres?
Ou ressonávamos na cova dos Sete Santos Adormecidos?
Assim era. Salvo este, todos os prazeres são fantasia.
Se alguma vez qualquer beleza eu de facto vi,
desejei e obtive, não foi senão um sonho de ti.

E agora, bom-dia às nossas almas que acordam,
E que, por medo, uma à outra se não contemplam;
Porque Amor todo o amor de outras visões influencia
E transforma um pequeno quarto numa imensidão.
Deixa que os descobridores partam para novos mundos,
E que aos outros os mapa-mundos sobre mundos mostrem,
Tenhamos nós um só, porque cada um possui, e é um mundo.

A minha face nos teus olhos, e a tua nos meus, aparecem,
Que os corações veros e simples nas faces se desenham;
Onde poderemos encontrar dois melhores hemisférios,
Sem o agudo Norte, nem o declinado Oeste?
Só morre o que não foi proporcionalmente misturado,
E se nossos dois amores são um, ou tu e eu nos amamos

Tão igualmente que nenhum abranda, nenhum pode morrer.


John Donne
(England 1572-1631)
in Os dias do Amor
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A uns olhos negros: Francisco de Vasconcelos


Olhos negros, que da alma sois senhores
Duvido com razão desse atributo,
Que é muito, que quem mata, traga o luto,
E é muito ver na noite resplendores.

Se de negros, meus olhos, tendes cores,
Como as almas vos dão hoje tributo,
Quem viu que os negros com rigor astuto
Os brancos prendam com grilhões traidores.

Mas ah, que foi discreta providência
O fazê-los da cor da minha sorte,
Por não sentir rigor tão desabrido.

Para que veja assim toda a prudência
Que foi prodígio grande, e pasmo forte,
Em duas noites ver o Sol partido.



Francisco de Vasconcelos (Coutinho)
Portugal 1665-1723
in Poemas de Amor
Antologia de Poesia Portuguesa
Org: Inês Pedrosa
Editor: Publicações D. Quixote

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Beijo: João de Deus


Como ele é doce!
Como ele trouxe,
             Flor,
Paz a meu seio!
Saciar-me veio,
             Amor!

Saciar-me? louco...
Um é tão pouco,
             Flor!
Deixa, concede
Que eu mate a sede,
             Amor!


Talvez te leve
O vento em breve,
             Flor!
A vida foge,
A vida é hoje,
             Amor!



Guardo segredo,
Não tenhas medo
             Pois!
Um mais na face,
E a mais não passe!
             Dois...

Oh! dois? piedade!
Coisas tão boas...
             Vês?
Quantas pessoas
Tem a Trindade?
             Três!

Três é a conta
Certinho, e justa...
             Vês?
E que te custa?
Não sejas tonta!
             Três!

Três, sim: não cuides
Que te desgraças:
             Vês?
Três são as Graças,
Três as Virtudes;
             Três.

As folhas santas
Que o lírio fecham,
             Vês?
E não o deixam
Manchar, são... quantas?
             Três!

João de Deus
Portugal 1830-1896
in 'Campo de Flores'
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Noite de Amores: João de Deus


Mimosa noite de amores,
Mimoso leito de flores,
Mimosos, lânguidos ais!
Vergôntea débil ainda,
Tremia! Lua tão linda,
Lembra-me ainda... Jamais!

Aquela dália mimosa,
Aquele botão de rosa
Dos lábios dela... Senhor!
Murchavam; mas, como a Lua,
Passava a nuvem: «Sou tua»!
Reverdeciam de amor!

E aquela estátua de neve
Como é que o fogo conteve
Que não a vi descoalhar?
Ondas de fogo, uma a uma,
Naquele peito de espuma
Eram as ondas do mar!

Como os seus olhos me olhavam,
Como nos meus se apagavam,
E se acendiam depois!
Como é que ali confundidas
Se não trocaram as vidas
E os corações de nós dois!

Mimosa noite de amores,
Mimoso leito deflores,
Mimosos, lânguidos ais!
Vergôntea débil ainda,
Tremia! Lua tão linda,
Lembra-me ainda... Jamais!

João de Deus
Portugal 1830-1896
in 'Campo de Flores'
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9 de julho de 2013

À noite na cama: Clarice Lispector


   
  «À noite na cama Constança aproximava-se,
colava-se rente ao corpo quente de Henrique, tocava-lhe no peito liso
nas ancas magras, no púbis grande e largo, até o acordar e rebolarem
juntos nos lençóis revolvidos pelo sono.
        Era o lugar de que esteio? As ancas estreitas e duras, aquele
olhar sem piedade nem remédio que o escuro do quarto devorava
mas ela conhecia tão bem; tão perto da maldade.
        Às vezes acordava de madrugada e ficava horas debruçada
sobre ele, a respirar-lhe o cheiro. A beber-lhe o hálito. A lamber-lhe
os ombros até ele acordar e a abraçar, entrar nela e se virem os dois
ao mesmo tempo.
        Numa pressa.
            Num desatino.
               Encharcados em suor.»

Clarice Lispector
Ucrânia 1920 - Brasil 1977
in A Paixão segundo G. H.                                (Excerto)
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Tu eras a pessoa mais antiga... : Clarice Lispector




































« Tu eras a pessoa mais antiga que eu jamais conheci. Eras a monotonia de 
meu amor eterno, e eu não sabia. Eu tinha por ti o tédio que sinto nos feriados. 
O que era? era como a água escorrendo numa fonte de pedra, e os anos 
demarcados na lisura da pedra, o musgo entreaberto pelo fio d'água correndo, 
e a nuvem no alto, e o homem amado repousando, e o amor parado, era feriado, 
e o silêncio no voo dos mosquitos. E o presente disponível. E minha libertação 
lentamente entediada, a fartura, a fartura do corpo que não pede e não precisa.»


Clarice Lispector
Ucrânia 1920 - Brasil 1977
   in A Paixão segundo G. H.                                                                                                                                                                                                                                                                             

4 de julho de 2013

Não sei Marilia, que tenho: Tomás António Gonzaga


Não sei, Marília, que tenho,
depois que vi o teu rosto,
pois quanto não é Marília
já não posso ver com gosto.
Noutra idade me alegrava,
até quando conversava
com o mais rude vaqueiro:
hoje, ó bela, me aborrece
inda o trato lisonjeiro
do mais discreto pastor.
       Que efeitos são os que sinto?
       Serão efeitos de amor?

Saio da minha cabana
sem reparar no que faço;
busco o sítio aonde moras,
suspendo de fronte o passo.
Fito os olhos na janela;
aonde, Marília bela,
tu chegas ao fim do dia;
se alguém passa e te saúda,
bem que seja cortesia,
se acende na face a cor.
       Que efeitos são s que sinto?
       Serão efeitos de amor?


Tomás António Gonzaga
Portugal 1744-1817
in Obras completas vol.1
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Apenas co brando peito: Tomás António Gonzaga


Apenas co brando peito
lhe tocou a neve fria,
com o calor que trazia,
lhe abrasou o coração.
Dá o pastor um suspiro,
abre os seus olhos e solta
do apertado ouvido a mão.

Logo que viram os gênios
ao triste pastor disposto
para ver o lindo rosto,
para as palavras ouvir,
cada um as armas toma,
cada um com elas busca
seu terno peito ferir.

Com os cabelos da deusa
lhe forma um Cupido laços,
que lhe seguram os braços,
como se fossem grilhões.
O pastor já não resiste;
antes beija, satisfeito,
as suas doces prisões.


Tomás António Gonzaga
Portugal 1744-1817
in Obras completas vol.1
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3 de julho de 2013

São mil as ondas : Fujiwara no Toshiyuki



São mil as ondas
Nas praias de Sumi.
Ao longo da noite
No carreiro dos meus sonhos
Corro em segredo para ti.


Fugiwara no Toshiyuki
(Japão 890-907)
in Os dias do Amor

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Como é diferente : Izumi-Shikibu



Como é diferente
No canto dos insectos
A voz a melodia —
Em cada coração
É outra a melancolia.

Quando eu morrer
Deixarei completamente a vida
Ou lembrarei ainda
A última vez
Que nos amámos?


Izumi-Shikibu
(Japão Séc.X-1061)
in Os dias do Amor
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Areia suavemente ondulada : Bai Juyi



Como comparar teu amor com as marés da foz do rio,
ou um coração feminino com as águas do mar?
Na ausênsia de ti, melhor esperar o prometido reencontro
nesta saudade de ti, entendo por fim quão pequeno é o oceano.


Bai Juyi
(China 772-846)
in Os dias do Amor
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2 de julho de 2013

Contrações: Isabel Machado


Abre e fecha
flechas de desejos
flashs instantâneos
quando penso em ti...
Pulsa o pulso
pulsa a flor que arde
curtas contrações
longos arrepios...
Abre e fecha
sangue bombeando
vida latejando
rega esse navio...
Pulsam bicos
seios bolinados
duros, retesados
querendo implodir...
Flor-de-cheiro
doce à la pom-pom
molha tua boca
sente quanto é bom...
Abre e fecha
pulsa e repuxa
flor-da-contração
arde de tesão
abre minhas coxas
rompe tuas forças
seca minhas poças
e deglutes
todas as flores roxas
que um dia
desabrochaste...


Isabel Machado
Brasil 1961
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A Mary: John Clare





















Estou contigo em toda a parte,
apesar de aqui não estares,
encho os braços de pensar-te,
e cinjo apenas os ares.
Teus olhos fitam os meus,
quando mais eu não te via;
meus lábios tocam os teus,
dia e noite, noite e dia.

De outras coisas penso e falo,
sossego o espírito assim.
Mas a memória não calo
de um amor que não tem fim.
O escondo aos olhos do mundo,
e o contrário penso e digo,
nas brisas do céu profundos
segredam de ti comigo.

Segreda o vento nocturno,
o luar dá-me no rosto;
um peso de horror soturno
por toda a parte está posto.
Nas moitas brisas sussurram,
o orvalho cai do arvoredo –
e, suspirando, murmuram
a vida que te concedo.


John Clare
England 1793-1864
in Os dias do Amor
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Eu cantarei um dia da tristeza: Marquesa de Alorna


Eu cantarei um dia da tristeza
por uns termos tão ternos e saudosos,
que deixem aos alegres invejosos
de chorarem o mal que lhes não pesa.
Abrandarei das penhas a dureza,
exalando suspiros tão queixosos,
que jamais os rochedos cavernosos
os repitam da mesma natureza.
Serras, penhascos, troncos, arvoredos,
ave, ponte, montanha, flor, corrente,
comigo hão-de chorar de amor enredos.
Mas ah! que adoro uma alma que não sente!
Guarda, Amor, os teus pérfidos segredos
que eu derramo os meus ais inutilmente.


Marquesa de Alorna
Portugal 1750-1839
in Poemas de Amor
Antologia de Poesia Portuguesa
Org: Inês Pedrosa
Editor: Publicações D. Quixote
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Cantiga d'amor : Paio Soares Taveirós


Como morreu quen nunca ben
ouve da ren que mais amou
e quen viu quanto receou
d’ela e foi morto por en,
        ai mia senhor, assi moir’eu!

Como morreu quen foi amar
quen lhi nunca quis ben fazer
e de que lhe fez Deus veer
de que foi morto con pesar,
       ai mia senhor, assi moir’eu!

Com’ome que ensandeceu,
senhor, con gran pesar que viu
e non foi ledo, nen dormiu
depois, mia senhor, e morreu,
       ai mia senhor, assi moir’eu!

Como morreu quen amou tal
dona que lhe nunca fez ben
e quem a viu levar a quen
a non valia, nen a val,
       ai mia senhor, assi moir’eu!


Paio SoaresTaveirós
(Portugal Séc. XIII)
in Os dias do Amor
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Como é vil o coração : Omar Khayyam



Como é vil o coração que não sabe amar,
que não pode embriagar-se de amor!
Se não amares, como poderás apreciar
a deslumbrante luz do sol e a doce claridade do luar?

Amor que não devaste não é amor.
Uma brasa espalha ainda o calor de uma fogueira?
Noite e dia, durante toda a sua vida,
o verdadeiro amante se consome de dor e de alegria.


Omar Khayyam
(Pérsia 1048-1123)
in Os dias do Amor
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Uma Rubra, Rubra Rosa: Robert Burns










































Oh, meu Amor é como uma rubra, rubra rosa
Em Junho desabrochada:
Oh, meu Amor é como uma melodia
Que docemente soa afinada.

Tu és tão bela, minha linda menina,
Quanto eu estou apaixonado;
E o meu amor por ti não termina
Mesmo que os mares tenham secado.

Mesmo que os mares sequem, minha querida,
E o sol os rochedos derreta,
Eu ainda te amarei, minha querida,
Enquanto a areia correr na ampulheta.

Adeus, meu único Amor,
Adeus, que breve estarei aqui!
Eu hei-de voltar, meu Amor,
Mesmo que dez mil milhas me separem de ti.

Robert Burns
England 1758-1796
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