Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

29 de maio de 2013

Anjos do apocalipse II : Maria Teresa Horta



Este é o anjo do apocalipse
com a sua espada
filva

funda

Embainhada na nossa
vagina

Ei-lo que rompe
o espaço
com a espada

com o esperma

Anjo da justiça
com o seu pénis

Caminham com estandartes
Com espadas e paixão
Numa erecção calada

São os anjos do ódio
com a sua raiva
alada

Vestem o corpo
com o brilho das armaduras
e do vidro

e só depois voam...

Os arcanjos do sonho
com as suas asas
nocturnas de veludo

São os arcanjos
do sonho

Usando comigo
a sua espada
de aço

Maria Teresa Horta
Portugal 1937
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25 de maio de 2013

A estalagem da razão : Fernando Pessoa



A meio caminho entre a fé e a crítica 
está a estalagem da razão. A razão e 
a fé no que se pode compreender sem fé; 
mas é uma fé ainda; porque compreender envolve pressupor que há qualquer coisa 
de compreensível

Fernando Pessoa
Portugal 1888-1935
in Prosa Íntima e de Autoconhecimento
(Reflexões pessoais)
Edição Rui Zenith
Edit. Assirio & Alvim
photo by Google

Regra de vida : Fernando Pessoa


       Seguindo o critério rigoroso dos ocultistas, mas
aplicando-a fora de exacta conformidade entre
os planos, alguns têm sustentado que em todos esses
planos se deve aplicar a regra de Faz o que Queres.
Mas este «que queres» implica o conhecimento
preliminar de Vera Vontade.
       No animal, que é todo instinto, substancialmente,
e em quem a Vera Vontade é a vontade do instinto, a
vida dos dois instintos, de conservação e de reprodução
representa, deveras, a verdadeira vida de vontade.
Mas isso não é preciso ensinar aos animais.
       No homem superior, isto é, no homem criador,
também a vontade vera está clara no seu destino
de criador, se bem que os obstáculos adquiridos
na passagem pelo simples homem continuamente
perturbem a expressão, e até a descoberta, da
simples vontade sua.
       No homem vulgar, porém, Faz o que Queres
não significa a mesma coisa, por isso que o
homem vulgar é uma individualidade superior
infantil, e as crianças não têm Vera Vontade.
Dizer, portanto, ao homem vulgar que faça o
que é por ele em geral interpretado como
que faça o que lhe agrada, sem atenção
aos outros, nem escrúpulo moral para
consigo mesmo. Ora isto está errado.
A verdadeira vontade


Fernando Pessoa
Portugal 1888-1935
in Prosa Íntima e de Autoconhecimento
(Reflexões pessoais)
Edição Rui Zenith
Edit. Assirio & Alvim
photo by Google

24 de maio de 2013

Parece tão gentil, recatada : Dante Alighieri



Parece tão gentil, tão recatada,
minha senhora quando alguém saúda,
que toda a língua treme e fica muda
e olhá-la até seria ideia ousada.
Quando ela passa, ouvindo-se louvada,
benignamente a humildade a escuda,
tal uma cousa que do céu acuda
à terra, por milagre revelada.
Tal graça ao coração de quem na mira
Está pelos olhos uma doçura a pôr
que não pode entender quem a não prove;
e dos lábios parece que se move
um espírito suave e só de amor
que vai dizendo à alma assim: Suspira.


Dante Alighieri
(Itália 1265-1321)
in Os dias do Amor
photo guan Zeju

Notas para uma Regra de Vida : Fernando Pessoa






















1. Cada um de nós não tem de seu nem de real 
    senão a sua própria individualidade.
2. Aumentar é aumentar-se.
3. Invadir a individualidade alheia é, além de contrário ao princípio
    fundamental, contrário (por isso mesmo também) a nós mesmos,
    pois invadir é sair de si, e ficamos sempre onde ganhamos (Por isso
    o criminoso é um débil, e o chefe um escravo.) (O verdadeiro forte é
    um despertador, nos outros, de energias deles. O verdadeiro mestre
    é um mestre de o não acompanharem.)
4. Atrair os outros a si é, ainda assim, o sinal da individualidade.


Fernando Pessoa
Portugal 1888-1935
in Prosa Íntima e de Autoconhecimento
(Reflexões pessoais)
Edição Richard Zenith
Edit. Assirio & Alvim
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22 de maio de 2013

Notas para uma regra de vida : Fernando Pessoa


Precisar de dominar os outros é precisar dos outros. O chefe é um dependente.


Aumentar a personalidade sem incluir nela nada alheio — nem pedindo aos outros,
nem mandando nos outros, mas sendo outros quando outros são precisos.

Reduzir as necessidades ao mínimo, para que em nada dependamos de outrem.

É certo que, em absoluto, esta vida é impossível. Mas não é impossível relativamente.

Consideremos um dono de escritório. Ele tem obrigação de poder dispensar toda a gente;
tem obrigação de saber escrever à máquina, de saber contabilidade, de saber varrer o escritório. 
Que a sua dependência dos outros seja, portanto, só uma necessidade de não perder tempo, 
e não uma necessidade da incompetência própria. Que diga ao praticante
«Vá deitar esta carta ao correio» porque não quer perder o tempo que levaria a deitá-la no correio 
mas não porque não saiba onde é o correio. Que diga ao empregado, «Vá tratar deste assunto ali», 
porque não quer perder o tempo de o tratar, mas não porque não saiba tratá-lo."


Fernando Pessoa
Portugal 1888-1935
in Prosa Intíma e de Autoconhecimento
(Reflexões pessoais)
Edição Richard Zenith
Edit. Assirio & Alvim 
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16 de maio de 2013

O Amor é o Amor : Alexandre O'neill


O amor é o amor — e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor
e trocamos — somos um? somos dois?
espírito e calor!

O amor é o amor — e depois?


Alexandre O’neill
(Portugal 1924-1986)
in "Poesias Completas"
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15 de maio de 2013

Regra de Vida : Fernando Pessoa


1. Faz o menor número de confidências possível. É melhor
         não fazeres nenhumas, mas se fizeres algumas, fá-las
         falsas ou imprecisas.

2. Sonha o menos possível excepto quando o propósito
        directo do sonho for um poema ou uma produção
        literária. Estuda e trabalha.

3. Tenta ser o mais sóbrio possível antecipando a sobriedade
         do corpo por uma atitude sóbria da mente.
       
4. Sê amável apenas por simples amabilidade, não abrindo
         a tua mente ou discutindo livremente os problemas que
         estão ligados à vida íntima do espírito.

5. Cultiva a concentração, tempera a vontade, faz de ti uma
          força pensando, o mais intimamente possível, que és
          realmente uma força.

6. Considera quão poucos amigos verdadeiros tens, porque
          poucas pessoas são capazes de ser amigas de alguém.

7. Tenta cativar por aquilo que o teu silêncio contém.

8. Aprende a agir prontamente nas pequenas coisas, nas
            coisas triviais da vida da rua, da vida doméstica, da vida
            do trabalho, a não tolerares atrasos vindos de ti próprio.

9. Organiza a tua vida como uma obra literária, pondo nela
           tanta unidade quanta possível.

10. Mata o Assassino.


Fernando Pessoa
Portugal 1888-1935
in Prosa Intíma e de Autoconhecimento
(Reflexões pessoais)
org. Richard Zenith
Edit. Assirio & Alvim 
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14 de maio de 2013

Contemplando a Amada : Sa'Adi


bela é a vida! mas é melhor ainda ao pé das ondas!
bom é o vinho! mas tem mais sabor ao som do rouxinol!
suave é o sono próximo do jasmim em flor!
e doce a flauta que soa junto da amiga perfumada!

dispenso a harpa e as melodias do cantor:
prefiro conversar com a querida amada.

não afastes o olhar da tua amiga fiel
para olhares o prado, ela é mais adorável:
malhas de armadura seus cabelos são,
torcidos, encaracolados, de graça tanta,
mais belos que o ondular de vagas sob o vento.

Sa’adi! estás com a amada sem sofreres com isso?

bom é alcançar-se aquilo que se quer
entregando a alma à sede da procura!


Sa’Adi
(Pérsia 1193-1250)
in Os dias do Amor
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12 de maio de 2013

Os Pêssegos : Eugénio de Andrade



Lembram adolescentes nus:
a doirada pele das nádegas
com marcas de carmim, a penugem
leve, mais encrespada e fulva
em torno do sexo distendido
e fácil, vulnerável aos desejos
de quem só o contempla e não ousa
aproximar dos flancos matinais
a crepuscular lentidão dos dedos.


Eugénio de Andrade
(Portugal 1923-2005)
In Poesia
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11 de maio de 2013

Ditirambo : Miguel Torga

É o amor que me inspira.
Amo a vida, esta bela prostituta.
Esta mulher tão pura e dissoluta
No mesmo instante,
Que não dá tréguas a nenhum amante.

Amo-a, e canto esse gosto renovado
De uma grande paixão sobressaltada.
Dum leito de soluços e suspiros
Misturados,
Ergo a voz e celebro
Os deuses sublimados
Que, divinos, me deram
o bem humano que nunca tiveram.


Miguel Torga
(Portugal 1907-1995)
in Poesias Completas

Miguel Torga: Madrigal dos cinquenta anos

Com as mesmas palavras do passado,
Digo que te desejo, vida!
E como um namorado
Que desmede a paixão, já desmedida,
Prometo
Ser-te fiel sem esperança.
Fiel à consciente
Temeridade
De amar intensamente
Sem mocidade...


Miguel Torga
(Portugal 1907-1995)
in Poesia Completa

Obsequio: Amparo Jimenez


(A Rosamaría)

Este orgasmo,
tan celosamente
guardado
     para tí,
hoy,
amorosa,
     lo entregué a mi mano.


Amparo Jimenez
(Mexico 1949)

Mar : Vinícius de Moraes


Na melancolia de teus olhos
Eu sinto a noite se inclinar
E ouço as cantigas antigas
Do mar.

Nos frios espaços de teus braços
Eu sinto a noite se inclinar
Eu me perco em carícias de água
E durmo escutando em vão
O silêncio.

E anseio em teu misterioso seio
Na atonia das ondas redondas
Náufrago entregue ao fluxo forte
Da morte.


Vinícius de Moraes
(Brasil 1913-1980)

Entrevista: Adélia Prado



Um homem do mundo me perguntou:
o que você pensa do sexo?
Uma das maravilhas da criação eu respondi.
Ele ficou atrapalhado, porque confunde as coisas
e esperava que eu dissesse maldição,
só porque antes lhe confiara:
o destino do homem é a santidade.
A mulher que me perguntou cheia de ódio:
você raspa lá? Perguntou sorrindo,
achando que assim melhor me assassinava.
Magníficos são o cálice e a vara que ele contém,
peludo ou não.
Santo, santo, santo é o amor que vem de Deus,
não porque uso luva ou navalha.
Que pode contra ele o excremento?
Mesmo a rosa, que pode a seu favor?
Se "cobre a multidão dos pecados e é benigno,
como a morte duro, como o inferno tenaz",
descansa em teu amor, que bem estás.


Adélia Prado
Brasil 1935
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Sempre amor : Dora Castellanos

    Para Inês e Adel López Gómez

Não foi só pelo gozo que te busquei:
também te quero para te padecer,
porque só o prazer que dá o ter
não dá a plenitude com que amei.

O vivo resplendor do desfrutado
menos amor é sempre que aquela forte
dor de coração que nos adverte
da cruel sorte de estar enamorado.

Sofro-te com dor, com alegria,
com deleite, com ódio, com doçura,
e toda a felicidade é agonia.

Se um dia nasci, foi para te ver;
para saber a tua paixão e a tua formosura,
para te fruir, Amor, e para te padecer.


Dora Castellanos
(Colombia 1924)
in Um País Que Sonha
"cem anos poesia colombiana"

Que diremos ainda : Eugénio de Andrade


Vê como de súbito o céu se fecha
sobre dunas e barcos,
e cada um de nós se volta e fixa
os olhos um no outro,
e como deles devagar escorre
a última luz sobre as areias.
.
Que diremos ainda? Serão palavras,
isto que aflora aos lábios?
Palavras?, este rumor tão leve
que ouvimos o dia desprender-se?
Palavras, ou luz ainda?
.
Palavras, não. Quem as sabia?
Foi apenas lembrança doutra luz.
Nem luz seria, apenas outro olhar.


Eugénio de Andrade
(Portugal 1923-2005)
in Poesia
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Os amantes sem dinheiro : Eugénio de Andrade

Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro.
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto
que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.


Eugénio de Andrade
(Portugal 1923-2005)
in Poesia
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Entre os teus lábios : Eugénio de Andrade

Entre os teus lábios
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.

No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.

Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.

Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.


Eugénio de Andrade
(Portugal 1923-2005)
in Poesia
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As folhas caídas : Kakinomoto no Hitomaro



As folhas coloridas
Apagaram os caminhos
Da montanha no Outono.
Como encontrar-te
Por trilhos que não conheço?

Teus cabelos embranqueceram
Enquanto os nossos corações
Se mantiveram unidos.
Acaso poderei
Perder-te agora?

Quando abandonada
No túmulo te deixei
Vim pelo caminho deslizando
Como se um morto
Andar pudesse.

Outono. Caem folhas
Coloridas na montanha.
Talvez se as pudesse
Na árvore segurar
Amor voltasses ainda.

Chego a casa e
Sento-me no quarto
Junto à nossa cama
Contemplando com tristeza
O teu travesseiro.


Kakinomoto no Hitomaro
 (Japão 665-710)

Separados e distantes : Li Bai



 Há quantas Primaveras estamos separados?
       Da janela de jade vi, cinco vezes,
       desabrochar as cerejeiras,
Eu sei, há as cartas de escrita rendilhada
       que, ao abrir, te fazem suspirar,
teu coração quase pára de bater, quanta saudade!
       Já não uso o toucado de nuvens,
não penteio meus cabelos,
       não mais os deixo cair sobre a testa.
Minha tristeza é uma pena levada pelo vento,
       um floco de neve rodopiando no ar.
O ano passado escrevi-te para a montanha dos Sete Socalcos,
        falei de tudo isto
e agora, por favor, escuta outra vez minhas palavras.
       Oh, vento leste, sopra para mim,
empurra para oeste a nuvem suspensa no ar!
       Há quanto tempo aguardo o teu regresso!...
A flor caída continua imóvel,
       quieta sobre o musgo verde.


Li Bai
(China 701-762)
in os dias do Amor
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Um só coração : Wang Wei


     Amoras vermelhas crescem nas terras do sul,

     as gavinhas brotam, com a Primavera.

       Vai colher algumas para me oferecer,

     como testemunho do teu amor por mim.


Wang Wei
(China 701-761)
in Os dias do Amor
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Os teus olhos brilham : Dama Otomo no Sakanoe




I
Os teus olhos brilham
Como se visses uma nuvem
Suspensa na verde montanha.
Os outros ficam a saber
Que nos amamos.
II
Quando me disseste, "Estarei
Contigo", não vieste.
Que não vens, dizes agora,
Mas vou esperar-te...
Acaso te compreendi?


Dama Otomo no Sakanoe
(Japão Séc. VIII)
in Os dias do Amor
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