Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

30 de abril de 2013

Talvez os outros... : Imperatriz Yamatohima

Talvez os outros

Possam esquecer-te.
Todas as noites
Sou possuída —
O teu belo fantasma

Imperatriz Yamatohima
(Japão Séc. VII)
in Os dias do Amor
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Eu amo-te, oh minha Laylâ : Tradição Oral (Arábia)



 Eu amo-te, oh minha Laylâ, eu teimo em te amar,
A ti que, ou perto ou longe, só pensas em me fugir!
Eu amo-te, oh minha Laylâ, e o mais pequeno suspiro
Deste amor, colhido no vento, respirado,
À alma dos peregrinos arrancaria lágrimas.
Sim, a ela me queixo, às escondidas, em segredo,
Deste desejo; muito baixo, falo-lhe da pressão
Deste violento amor. Se tenho que a deixar,
Surda à minha lástima, então queixo-me ao Senhor.
Que tenho eu a ganhar, se eu a vir muito perto? Prantos.
Apaixonado, achincalhado, que horror!, se perto ela estiver.

Oh, o seu olhar sobre mim! Fala-me, surpreende-me,
Silenciosa troca, nos meus olhos a resposta.
“Voltamos a ver-nos”: os seus olhos, dilatados, anunciam,
Depois, nos mesmos olhos, é a morte quem me espera.
Eu temo, eu desespero e morro; e sob a esperança
Eu renasço. Quantas vezes, morto, já ressuscitei!
Eles andam por aí, a toda a volta, todos, homens, djinns, tanto pior
Se acreditarem que vão reter-me longe de ti: Pois eu aqui estou!


Tradição Oral
(Arábia Séc. VII)
in Os dias do Amor
Trad. Myriam Jubilot Carvalho
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N.T: Majnûn é uma lenda Árabe pré-islâmica, que canta um amor contrariado
        e impossível, pelo que os nomes dos amantes têm um duplo sentido: além
        de serem os seus nomes, Majnûn significa Louco, e Laylâ significa noite.

Longos pensamentos de amor : Tchang Chouai


Longos pensamentos de amor,
     Separação que se prolonga,
A ausência do amado parece a chuva que para,
     Alguém só, espera, de pé,
     Coração apertado.
Vê uma nuvem , que foge ao longe,
     Um pássaro, que voa e desaparece.
     E é sempre a mesma espera em vão;
     As lágrimas perlam, inesgotáveis.


Tchang Chouai
(China 475-527)
in Os dias do Amor

Delícia é possui-la : Anónimo

                     Delícia é possui-la, que é tão bela,
                     e me amas tanto, e ter-me quer por seu.
                    No peito guardo viva a imagem dela:
                    dar-me-iam rezas e jejuns tal céu?



Anónimo
(Índia Séc. IV a X)
in Os dias do Amor
trad. Jorge de Sena
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A Sua Mulher : Décimo Magno Ausónio


Amor, vivamos como sempre, não esqueçamos
os doces nomes ditos na primeira noite,
e nunca venha o dia que nos veja velhos:
eu sempre o jovem teu, e tu a minha noiva.
Que mais do que Nestor provecto eu seja em anos,
E tu na idade venças a senil Sibila.
De tão extrema velhice ignoraremos tudo:
menos as ciências dela no escapar do tempo.


Décimo Magno Ausónio
(Gália 310-395)
in Os dias do Amor
trad. Jorge de Sena

A Cíntia : Propércio



Agora sei como é terrivel
a solidão das longas noites,
ouvindo só nos meus ouvidos
das próprias queixas o  rumor.

Feliz aquele a quem consentem
Chorar ao pé da sua amiga,
pois o Amor é complacente
perante as lágrimas vertidas.

Feliz o amante desdenhado
que vai em busca de outro fogo:
inda que volte a ser escravo
só por mudar teve consolo.

Mas eu a mais ninguém me dou.
Só este laço é que eu aceito:
foi Cíntia  o meu primeiro amor,
Cíntia será o derradeiro!

Propércio
(Roma Séc. I a. c.)
in Os dias do Amor
trad. David Mourão Ferreira



Deixa-me ainda, amor... : Bíon


Deixa-me ainda, amor, debruçar-me em teu rosto,
para ver se te acordo ao menos um instante;
e, ao cingir num abraço o teu corpo já morto,
ver se voltas a ser o meu jovem amante…

Dá-me só mais um beijo, o último de todos
- mas que seja igualmente o beijo mais perfeito!-
para que a tua alma, exilada do corpo,
eu a possa guardar no fundo do meu peito…

Hei-de beber-te assim a vida que te resta,
julgar que inda conservo o que afinal perdi,
enquanto noutro reino, entre sombras funestas,
um implacável deus me separa de ti.

Agora não duvido: esse deus é mais forte,
Pois tudo quanto é belo acaba á sua sombra.
Porque sou imortal? Porque não vem a morte
arrastar-me também para onde te encontras?


Bíon
(Grécia Séc. III a. c.)
in Os dias do Amor
trad. David Mourão Ferreira
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29 de abril de 2013

A tua voz fala de Amor : Fernando Pessoa


A tua voz fala de amor..
Tão meiga fala, que me esquece
Que é falsa a sua meiga prosa.
Meu coração desentristece.

Ah, como a música sugere
O que na música não ‘stá,
Meu coração nada mais quer
Que o sonho falso que em ti há...

Amar-me? Quem o crera? Fala
Na mesma voz que nada diz...
Se és uma música que embala,
Eu oiço, ignoro e sou feliz.

Não há felicidade falsa,
Enquanto dura é verdadeira,
Que importa o que a verdade exalça?
Ou sou feliz desta maneira?


Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
“in Poesia 1918-1930”
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28 de abril de 2013

Quem bate à minha porta : Fernando Pessoa

Quem bate à minha porta
Tão insistentemente
Saberá que está morta
A alma que em mim sente?

Será que eu a velo
Desde que a noite é entrada
Com o vácuo e vão desvelo
De quem não vela nada?

Saberá que estou surdo?
Porque o sabe ou não sabe,
E assim bate, ermo e absurdo,
Até que o mundo acabe?


Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
in Poesia 1930-1935

Não meu, não meu é quando escrevo : Fernando Pessoa

Não meu, não meu é quanto escrevo
A quem devo?
De quem sou o arauto nado?
Porque, enganado,
Julguei ser meu o que era meu?
Que outro mo deu?
Mas, seja como for, se a sorte
For eu ser morte
De uma outra vida que em mim vive,
Eu, o que estive
Em ilusão toda esta vida
Aparecida,
Sou grato Ao que do pó que sou
Me levantou.


Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
in Poesias 1930-1935

Ritmo interior : Fernando Pessoa


Eu quero sentir -te, Maria, dormir
Tão perto ao meu lado,
E tanto, tão fundo, tão bem o sentir
Que possa enganado
Julgar-me vivendo num pálido além
Contigo somente
E numa só alma que as nossas contêm
Amando-te insciente,
Sentindo-te como sentindo-me a mim,
Em mim embebida;
Sem forma ou lugar, com o tempo sem fim
Medindo essa vida.

Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
“in Poesia 1902-1917”
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Antes que o Tempo fosse : Fernando Pessoa



Antes que o Tempo fosse
De dentro d'alma reinei
Numa vida antiga e doce.
Antes que o tempo fosse
Vivi sem dor e amei.

Não sei que a forma vaga
Prendi esse meu amor
Sei que inda me embriaga
Remota imagem e vaga
Que vive na minha dor.

Recordo um sonho sonhado?
É sonho e recordação?
Não sei; ao meu ser cansado
Que importa o que foi sonhado,
Se o próprio real é ilusão?


Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
“in Poesia 1902-1917”
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Na noite : Fernando Pessoa


O sossego da noite desce
Sobre os meus olhos cansados,
E como flor que fenece
Dentro em minh’alma me esquece
O cuidado do meu e dos alheios fados.

Cai vago o fresco escuro
Do silêncio sem fim,
E a dúvida do futuro
Como um mendigo obscuro
Inobservada dorme um sono alheio em mim.

De que nos serve a luta —
Pergunto em mim —  e a dor?
Ter tantas vezes a alma astuta
Para o que sabe e o que perscruta
E não achar no ser um tempo para amor?

Passe ao meu ser a calma
Da noite sem luar.
Sinta-me eu vendo a alma,
Num barco escuro calma,
Incertamente e para longe deslizar. *

Creia-me sem desejo
O momento em que estou;
Perca o saber o que é um beijo,
E o próprio esboço de um desejo,
O que eu nest’hora em mim quero sonhar que sou.


Pareçam-me a arte e a lida
Cousas sem nexo em ser.
Goze eu a indefinida
Alegria de longe da vida
Me sentir apartado e apenas a ver.

Não me lembre o que é pranto...
Lágrimas o que são?
Sinta eu o fresco manto
Deste nocturno encanto
Como um mar vago em torno ao frio coração.

E quando vier a morte,
Não seja senão assim...
Sem saber o que é sorte
Ou o que é ter um norte,
E suave como um sonho a consciência do fim.


Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
“in Poesia 1902-1917”
photo by Google

Tão abstrata é a ideia do teu ser : Fernando Pessoa





Tão abstrata é a ideia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
E nada fica em meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longemente,
E a ideia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter-me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
A ilusão da sensação, e sonho,
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.

Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
“in Poesia 1902-1917”
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Soneto : Fernando Pessoa






















Tudo quanto é beleza tu conténs
E quanto de amor há, que o tem nela,
No indefinido sentimento dela:
Tudo isso há em ti, tu és e manténs.
A vida com seu vago □ bens
E o mundo de consciência que revela
Tudo se inclui em ti, inda que se vela
O não poder-te ter, tudo que tens.
Amo-te por amar-te desprezando-me
E o meu desprezo fere o meu amor
Dum sentimento tão total de dor
Que a dor pode ser um sentimento, dando-me
Mais sentir faz-me mais sentir no querer-te
No não poder querer poder obter-te.




Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
“in Poesia 1902-1917”
photo by Google

A sesta indefinida : Fernando Pessoa



I
Agora que o calor esmaga, e faz
Mais morta em nós a magoada vida,
Ao meu espírito turvo mais apraz
A ideia de uma Sesta Indefinida.
À sombra duma árvore encolhido
Com um dormir-ali-de-abandonado
Sem a memória alvar de ter vivido
Ou a consciência vã de ter pensado,
Eu gozaria a dor de ser somente
Uma morte de mim, sentindo apenas
Uma vida remota pertencente
A uma alma minha alheia às minhas penas.
Seria eterno aquele meio-dia,
Sempre sol. Nunca porque refrescasse
Ou porque escurecesse acordaria
Meu ser nulo que apenas respirasse

E omitido de mim o tempo e o espaço
Olhos fechados — os do corpo e os da alma —
Eu dormiria a eternidade, baço
Numa quente e impessoal’ calma.
Seria assim a Sesta Indefinida...
No regaço da morte,  infante
Eu viveria a imensidão da vida
Ao torpor que anuvia o mero Instante.

II

Eu nada sou, e nada valho. Penso,
Memoro, e fica em mim o que 
E é sempre mais estéril e intenso
Meu desejo de ser mais do que sonho...
Esvai-se no sonho o raciocínio vão
Que tivera a alegria ao começar
Sinto pesar-me em corpo o coração
A minha própria carne em mim pesar...
Eu nada sou, pois nada realizo,
Há entre mim e o mundo o abismo eterno
Do sonho ser apenas o impreciso
E o mundo externo não ser mais que externo.


Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
“in Poesia 1902-1917”
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Complexidade : Fernando Pessoa

























São horas, meu amor, de ter tédio de tudo…
A minha sensação desta Hora é um veludo
Cortemos dele uma capa para o nosso saber
Que não vale a pena viver...
Vai alto, meu amor, o sol de termos tédio
Até ao nojo corporal de o saber tido...
Sei que vivo... Que horror! Tu és um mero remédio
Que tomo para ter vivido...
Que horror seres a mesma sempre, não te esmaga
O saber-te A Igual? És como as outras. Vaga
Dum mar de vagas sempre iguais é esta hora
De ti, ó parco Outrora...
Separemo-nos, mesmo se um de nós da ideia
Do outro, mero eco fique do outro ou reverbero...
Oh como o meu amar-te, ó meu amor, te odeia!
Com que aversão te quero!


Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
“in Poesia 1902-1917”
photo by Google

Hora absurda : Fernando Pessoa
























O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas... 
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso... 
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas 
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...
 
Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte... 
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto... 
Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto 
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...

Abre todas as portas e que o vento varra a ideia 
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões... 
Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia, 
E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...

Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora, 
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela... 
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora... 
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto... 
A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter sido... 
Não haver qualquer cousa como leitos para as naus!... Absorto 
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro, 
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há, 
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro, 
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos... 
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas... 
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas... 
E a erva cresceu nas vias-férreas com viços daninhos...

Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram! 
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam 
Do Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram 
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono 
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada 
E sente saudades de si ante aquele lugar-outono... 
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

A doida partiu todos os candelabros glabros,  
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas... 
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros... 
E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...

Porque me aflijo e me enfermo?... Deitam-se nuas ao luar 
Todas as ninfas... Vejo o sol e já tinham partido... 
O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar, 
E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...

Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora... 
As próprias sombras estão mais tristes... Ainda 
Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora 
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...

Todos os casos fundiram-se na minha alma... 
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios... 
Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma, 
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...

Ergueram-se a um tempo todos os remos... Pelo ouro das searas 
Passou uma saudade de não serem o mar... Em frente 
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras... 
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol! 
Todas as princesas sentiram o seio oprimido... 
Da última janela do castelo só um girassol 
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!... 
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?... 
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula... 
Por que não há-de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te 
E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho... 
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,  
E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor de medonho...

Para que não ter por ti desprezo? Por que não perdê-lo?... 
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque — 
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo, 
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque…
 
Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos... 
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim... 
O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos, 
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir... 
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem... 
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir, 
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...

É preciso destruir o propósito de todas as pontes, 
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras, 
Endireitar à força a curva dos horizontes, 
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!... 
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã – como nos desalegra !...

Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem 
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce... 
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito... 
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece, 
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!... 
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!... 
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia baptismal, 
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema — Vitória!

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma 
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos... 
Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma... 
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...


Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
“in Poesia 1902-1917”
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Corpos : Fernando Pessoa



     O meu corpo é o abismo entre eu e eu.
     Se tudo é um sonho sob o sonho aberto
     Do céu irreal, sonhar-te é possuir-te,
     E possuir-te é sonhar-te de mais perto
     As almas sempre separadas,
     Os corpos são o sonho de uma ponte
     Sobre um abismo que nem margens tem
     Eu porque me conheço, me separo
     De mim, e penso, e o pensamento é avaro
     A hora passa. Mas meu sonho é meu.



     Fernando Pessoa
     (Portugal 1888-1935)
     “in Poesia 1902-1917”
     photo by Google

Amen outros a graça feminina : Fernando Pessoa



Amem outros a graça feminina
Gozem sonhar seus lábios entre seios
Outros e muitos... que meus cantos, dei-os
À tua formosura peregrina...

Meu doce Apoio jovem... Ó divina
Flor adónica de ópios e de enleios
Ver-te é esquecer que há neste mundo anseios
Carnais, ó □ Vénus masculina.

Ninguém saberá nunca quem tu és...
Meu coração, óleo que unja teus pés —
Quem sabe se tu mesmo o sentirás?...

Que importa... E a vergonha e o mal que importa?
Quem me dera viver à tua porta
Inda que vendo o amor que a outrem dás!...


Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
“in Poesia 1902-1917”
photo by Google