Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

27 de dezembro de 2012

Ode ao Amor : María Mercedes Carranza


Uma tarde que jamais esquecerás
chega a tua casa e senta-te à mesa.
Pouco a pouco terá um lugar em cada quarto,
nas paredes e nos móveis estarão as suas marcas,
abrirá a tua cama e amarrotará a almofada.
Os livros da biblioteca, precioso tecido de anos,
acomodar-se-ão ao seu gosto e semelhança,
mudarão de lugar as fotografias antigas.
Outros olhos contemplarão os teus hábitos,
as tuas idas e vindas entre paredes e abraços
e serão diferentes os ruídos quotidianos e os cheiros.
Uma qualquer tarde que jamais esquecerás
o que desarrumou a tua casa e habitou as tuas coisas
sairá pela porta sem dizer adeus.
Terás de começar a fazer de novo a casa,
arrumar os móveis e limpar as paredes,
mudar as fechaduras, quebrar os retratos,
varrer tudo e continuar a viver.


María Mercedes Carranza
(Colômbia 1945-2003)
in Um País Que Sonha - Cem anos de poesia colombiana

18 de dezembro de 2012

Se a nossa vida fosse: Fernando Pessoa


101.
   Se a nossa vida fosse um eterno estar-à-janela, se assim ficássemos,
como um fumo parado, sempre, tendo sempre o mesmo momento de crepúsculo
dolorindo a sombra dos montes. Se assim ficássemos para além de sempre!
Se ao menos, aquém da impossibilidade, assim pudessemos quedar-nos,
sem que cometêssemos uma acção, sem que os nossos lábios pálidos
pecassem mais palavras!
   Olha como vai escurecendo!... O sossego positivo de tudo enche-me de
raiva, de qualquer coisa que é o travo no sabor da aspiração.
Dói-me a alma...
Um traço lento de fumo erge-se e dispersa-se lá longe... Um tédio
inquieto fas-me não pensar mais em ti...
  Tão supérfluo tudo! nós e o momento e o mistério de tudo.

Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
in Livro do Desassossego
"Assirio & Alvim"

Um dia quando a ternura... : José Luis Peixoto


    um dia, quando a ternura for a única regra da manhã,
acordarei entre os teus braços. a tua pele será talvez demasiado bela.
e a luz compreenderá a impossível compreensão do amor.
um dia, quando a chuva secar na memória, quando o inverno for
tão distante, quando o frio responder devagar com a voz arrastada
de um velho, estarei contigo e cantarão pássaros no parapeito da  nossa janela.
sim, cantarão pássaros, haverá flores, mas nada disso
será culpa minha,

Jose Luis Peixoto
(Portugal

15 de dezembro de 2012

Precisava de falar-te ao ouvido: Daniel Faria


Precisava de falar-te ao ouvido
De manter sobre a rodilha do silêncio
A escrita
Precisava dos teus joelhos. Da tua porta aberta.
Da indigência. E da fadiga.
Da tua sombra sobre a minha sombra
E da tua casa
E do chão.

Daniel Faria    "inédito"
(Portugal 1971-1999)

13 de dezembro de 2012

No tempo em que éramos felizes: José Luis Peixoto

no tempo em que éramos felizes não chovia.
levantavamo-nos juntos, abraçados ao sol.
as manhãs eram um céu infinito. o nosso amor
era as manhãs. no tempo em que éramos felizes
o horizonte tocava-se com a ponta dos dedos.
as marés traziam o fim da tarde e não víamos
mais do que o olhar um do outro. brincava-mos
e éramos crianças felizes. às vezes ainda
te espero como te esperava quando chegavas
com uniforme lindo da tua infância.
há muito tempo que te espero. há muito tempo que não vens.

José Luís Peixoto
(Portugal
in A criança em ruínas

Há algo em ti: Dora Castellanos

Há algo em ti que nunca conquistei
sombra vã que não obedece,
algo que me perturba e me estremece:
flor  de amor que nunca desfolhei.

É algo indefinível, atormentado;
noite que não acaba nem amanhece;
que sórdido cílio permanece
entre a carne viva, soterrado.

Algo entre a loucura e o espanto.
Grito que vai chegar e nunca chega,
perto do resplendor, próximo do pranto.

Ó trágica dor de ferida cega!
Amor por quem suspiro e me levanto,
há algo em ti que nunca  se me entrega.

Dora  Castellanos
(Colômbia 1924)
in Um País Que Sonha
"cem anos de poesia colombiana"

Quase Obsceno: Raúl Gómez Jattin


Se quiseres ouvir o que me digo na almofada
o rubor do teu rosto seria a recompensa;
São palavras tão íntimas como a minha própria carne
que padece a dor da tua implacável lembrança
Conto-te Sim? Não te vingarás um dia? Digo-me:
Beijaria essa boca lentamente até a tornar vermelha
no momento mais inesperado e como por acaso
o toca com esse fervor que inspira o sagrado
Não sou malvado. Trato de te enamorar
Tento ser sincero com o doente que estou e entrar
no malefício do teu corpo como um rio que receia o mar
mas acaba por morrer nele.

 Raúl Gómez Jattin (Colômbia 1945-1997)
in Um país que sonha "Cem anos poesia colombiana"

Quando o meu desejo... : Ono No Komachi



Quando o meu desejo
se torna imenso de mais,
visto a roupa de dormir
virada do avesso,
escura casca da noite.1       Excerto

1. Velho costume japonês de virar a roupa ao contrário para que se cumpra um desejo.

Ono No Komachi
(Japão 834 ?)
in O Japão no Feminino I

11 de dezembro de 2012

Poderia ter escrito a tremer de respirares tão longe : Daniel Faria

Poderia ter escrito a tremer de respirares tão longe
Ter escrito com o sangue.
Também poderia ter escrito as visões
Se os olhos divídidos em partes não sobrassem
No vazio da cegues
E luz.
Poderia ter escrito o que sei
Do futuro e de ti
E de ter visto no deserto
O silêncio, o fogo e o dilúvio.
De dormir cheio de sede e poderia
Escrever
O interior do repouso
E ser faúlha onde  a morte vive
E a vida rompe.
E poderia ter escrito o meu nome no teu nome
Porque me alimento da tua boca
E na palavra me sustento em ti
                                                    (Inédito)
Daniel Faria
(Portugal 1971-1999)
in Poesia - Assirio & Alvim
     

O meu desejo de ti : Ono No Komachi


O meu desejo de ti
é forte para contê-lo
assim ninguém vai culpar-me
se à noite for ter contigo
pela estrada dos meus sonhos

Não há como vê-lo
nesta noite sem luar --
estou deitada e desperta,
os seios ardendo em desejo
e o coração em chamas

Ono No Komachi
(Japão 834?)
in O Japão no Feminino I

5 de dezembro de 2012

A Mulher mais bonita do mundo : José Luis Peixoto


estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram
flores novas na terra do jardim, quero dizer que
estás bonita.
entro na casa, entro no quarto, abro o armário, abro
uma gaveta, abro uma caixa onde está o teu fio
de ouro.
entre os dedos, seguro o teu fino fio de ouro, como
se tocasse a pele do teu pescoço.
há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim.
Estás tão bonita hoje.
os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.
estás dentro de algo que está dentro de todas as
coisas, a minha voz nomeia-te para descrever
a beleza.
os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.
de encontro ao silêncio, dentro do mundo,
estás tão bonita é aquilo que quero dizer.

José Luis Peixoto
(Portugal
in Uma casa na escuridão

2 de dezembro de 2012

Cio: Glória Sartore















Cio
                          

Entre as pernas te prendo
serpente e presa em duelo

Instintivos golpes
em obscena estratégia
– despudorada arma

Vitoriosa
bebo em teu cálice
o sêmen

...chove sobre o cio.

Glória Sartore
(Brasil)

Cortando las Cebollas: Domingo Alfonso

- Para Ismael González Castañar y su esposa-

Apoyado sobre tus brazos
tus ojos y mis pupilas
se hunden en aguas de una laguna
que asfixian todo sentimiento diferente.

De esta manera
unidos el uno y el otro, fundidos
gracias al diablo que despertó:
Mis manos en tus nalgas; pero queriendo cubrir
cada pulgada de tu cuerpo
en un abrazo imposible.

Nada diferente.
Historias tan conocidas.

Media hora después,
en la cocina, cortando las cebollas
Nada recordarás.

Probablemente
mis manos al acariciar este papel
piensan que toco la curva de tu espalda.

Domingo Alfonso
“Cuba n. 1935”

De redondo cu : E. M. Melo e Castro


de redondo cu
eu cúbica te quero
como cólera química ou paz comum
que nada tão navega
a tua nádega núbica
de redondo nenúfar
nu furioso.

no volume do cu
velo o teu lume
ocioso cio de culher
nos colhões que te encosto
pelas costas
no cu que te descubro
pelo olho
no volume que rasgo
pela vela
do duro coração na cumoção
de ter-te pelas tetas
culocada na posição
decúbita
culada
da comunicação.

E. M. Melo e Castro
(Portugal 1932

E me disseste: Vem : Albano Martins


E me disseste: vem. E havia
alguns despojos sobre a areia, algumas
ressentidas grinaldas
no limiar das têmporas. Havia
alguns gestos suspensos, um cofre
de esmeraldas, um torpor
nos membros retardados. E havia
um colar para as mãos, uma colina
para os lábios e uma flor
intacta perfumando
o silêncio, à beira
de indizíveis planícies.

Albano Martins in Os dias do Amor
“Portugal n. 1930”