Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

17 de setembro de 2012

Quando os nossos corpos... : José Luis Peixoto

   
 quando os nossos corpos se separaram olhamo-nos quase a desejar ser felizes.
vesti-me devagar, o corpo a ser ridículo. disse espero que encontres um homem
que te ame, e ambos baixamos o olhar por sabermos que esse homem não existe.
despedimo-nos. tu ficas-te para sempre deitada na cama  e nua, eu saí para sempre
na noite olhamo-nos pela última vez e despedimo-nos sem sequer nos conhecer-mos.

José Luís Peixoto
(Portugal 1974
in A criança em ruínas
"Quetzal"

Um dia tão de sexo: Armando Silva Carvalho

O sol circunda o corpo e o meu desejo
sobe
e entra na folhaguem
suspeita
dos teus olhos.
A luz interior quebra o meu corpo
no mármore do seu rosto.
A casa é testemunha
exclamo
com toda a vibração dum orgasmo
matutino.

Armando Silva Carvalho
(Portugal
in O que foi passado a limpo - Antologia Poética ''Assirio & Alvim"

8 de setembro de 2012

A jovem deusa passa: Miguel Torga

A jovem deusa passa
Com véus discretos sobre a virgindade;
Olha e não olha, como a mocidade;
E um jovem deus pressente aquela graça.

Depois, a vida do desejo enlaça
Numa só volta a dupla divindade;
E os jovens deuses abrem-se à verdade,
Sedentos de beber na mesma taça.

É um vinho amargo que lhes cresta na boca;
Um condão vago que os desperta e toca
De humana e dolorosa consciência.
E abraçam-se de novo, já sem asas.
Homens apenas, vivos como brasas,
A queimar o que resta da inocência.

Miguel Torga
(Portugal 1907-1995)

Aperto as tuas coxas: Armando Silva Carvalho

Aperto as tuas coxas.
Carne da tua carne.

A minha língua sabe-te
mas eu
não te conheço.

O teu perfil romano
sobre a almo-
fada
como numa salva.

A minha cara
colhe as tuas lágrimas
e esta cama muda
range no silêncio.

Ouvir-te toda a noite
e levar anos
e anos
a sentir-te.

Armando Silva Carvalho
(Portugal 1938
                                                        in O Que Foi Passado a Limpo - Obra Poética
                                                                            "Assirio & Alvim"

Vertigem: José Luis Peixoto

somos tão novos e estamos tão perdidos. o teu silêncio
dentro dos gritos das árvores, o meu silêncio sobre o
entardecer. seria feliz se pudesse dizer-te: vem,
vamos fugir de mãos dadas, amor.

José Luis Peixoto
(Portugal 1974
in A casa, a Escuridão - "Temas e Debates"

Fuga para a eternidade: José Luis Dias-Granados

Caminhando lentamente
irremediavelmente para a morte,
só quero, entretanto,
ir tocando esta luz, esta semente,
esta terra;
                   ir sentindo o sabor
     desta fruta recém-colhida,
e deste lábio que a noiva oferece
com a sua profunda delícia,
para quando chegar a hora da fuga
inventar nesta eternidade
o beijo
         e o fruto
                    e o poema

José Luis Diaz-Granados
(Colômbia 1946
                                                             in Um País Que Sonha
                                                        Cem anos de poesia Colombiana
                                                                 "Assirio & Alvim"

Os Amantes: Carmelina Soto

Os que amaram devem ficar cegos.
Para que os seus gestos sejam sem sentido.
Para que os seus barcos girem sem graça nem proveito.
Como as tempestades...
Cegos.
Cegos como bandeiras depois da vitória
ou como as espadas
que estão sempre nuas e gloriosas.
Que rancor pelos cegos
e pelas tempestades.
E pelos que acreditam que o amor é a fartura.
Ouvi-o bem. O amor é a fome.

Carmelina Soto
(Colômbia 1916-1994)
                                             in Um País Que Sonha
                                      Cem anos de poesia colombiana

Retalhos Casuais: Lívia Tucci

Quando inteira pelo fogo,
sem ser verão, sem ser estio,
vasculho os sonhos na hora incerta,
no nascer do corpo, no nascer do cio.
Em carícias, em regaços,
fecho o alvo doce e assisto,
em passos lentos, aos teus passos,
ruir a desordem da matéria,
quente e lassa,
nas células, o sobrevôo das ternas libelulas.
Quando danço refeita,
depois da festa, depois do riso,
quando o cheiro, o traço, as vértebras,
de todas as palavras, os versos,
em suma, o resumo para um novo livro.


Recomponho em cacos e versículos,
as manhãs que traças em minhas fendas,
quando o sangue da tua carne prevalece,
quando a boca seca-te o poço, trêmula.
Sábia, em noites crescentes,
me abro em concha estelar...
E é sempre, quando na chuva,
minada me derreter...
Será sempre quando
frágil me inundar,
aí então, só tu
Vais me entender,
                me acolher
                          e me secar.

Lívia Tucci                                         in O Avesso do Cristal
(Brasil 1955)






Igual aos Deuses: Safo

Igual aos Deuses me parece
quem a teu lado vai sentar-se,
quem saboreia a tua voz
mais as delícias desse riso
que me derrete o coração
e o faz bater sobre os meus lábios.
Assim que vejo esse teu rosto
quebra-se logo a minha voz
seca-me a língua entre os dentes,
corre-me um fogo sob a pele,
ficam-me surdos os ouvidos
e os olhos cegos de repente
Torna-se líquido o meu corpo:
trânsito transpiro e tremo  ao mesmo tempo.
Vejo-me verde: mais que a erva .
Só por acaso é que não morro.

Safo
(Grécia sec. VII a.c.)

Pelo corpo: Luíza Neto Jorge



infinita invenção
de petala a escaldar
desprende o falo
a palavra sublinhada
que é ele a avançar-me
pelo corpo
a porta giratória
que me troca
pelo homem e, a este,
o fértil trajo
que lhe cria mais seios
pelo corpo




Luíza Neto jorge
(Portugal 1939-1989)
in Poesia
"Assirio &Alvim"