Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

26 de maio de 2012

Cantiga de amor: Aleilton Fonseca

Flor que se guarda em botão,
assim me existes
e te adivinho pétalas, perfume
e cor - e sou esperança
Se esperas  o bocejo  do sol,
mais quente é o fogo do olhar
no silêncio da espreita .
Em que palavras te ocultas,
e de mim te esquivas,
se és espelho em teu íntimo?
Os gestos que te sei possíveis
te farão desabrochar  de ti mesma
como os versos de um poema.

Aleilton Fonseca
(Brasil 1959)

Sou ferida em brasa: Ady Endre


Sou ferida aguda em brasa, e ardo
atormenta-me a luz, e o orvalho,
é a ti que quero, por ti eu vim,
desejo mais tormentos: a ti quero.

Flameje, branqueada, a tua chama:
os beijos doem, doem os desejos,
és o meu tormento, minha geena
eu quero-te muito, quero-te muito!

Desejo rasgou-me, beijo fez sangue,
sou ferida em brasa fome de tormentos
novos, dá-mos, a este esfomeado:
sou ferida, beija-me, queima-me, queima-me.

Ady Endre
(Hungria 1877-1919)

20 de maio de 2012

Feiticeira: Delfim Guimarães

Nunca lhe confessara o amor ardente
Que ela em mim despertou, mal eu a vira;
Escondia-o no peito, avaramente,
Receando que alguém mo descobrira.

Guardava-o p'ra comigo unicamente...
Arrancar-mo? Ninguém conseguira!
Dizer-lho a ela? Nem sequer à mente
Essa ideia, confesso, me acudira.

Mas certo dia, em seu olhar doce
Vi fugir um clarão, o quer que fosse
Que me intrigou... Interroguei-a a medo,

E soube então, surpreso e alvoroçado,
Que os seus olhos haviam desvendado
O que eu na minha alma guardava: o meu segredo!

Delfim Guimarães
(Portugal 1872-1933)

Eu torno-me cada vez mais dócil: Anna Akhmátova

Eu torno-me cada vez mais dócil,
e tu sempre misterioso e novo,
mas teu amor, meu severo amigo,
é uma prova de ferro e fogo.

Proíbes-me de cantar, sorrir,
e há muito tempo de rezar,
desde que não me aparte de ti,
todo o resto me é igual!

Assim, alheia à terra e ao céu,
já não canto apenas vivo.
Minha alma livre arrancaste
do inferno e do paraiso.

Anna Akhmátova
(Russia 1889-1966)

Há na intimidade um limiar sagrado: Anna Akhmatova

Há na intimidade um limiar sagrado,
encantamento e paixão não o podem transpor -
mesmo que no silêncio assustador se fundam
os lábios e o coração se rasgue de amor.

Onde a amizade nada pode nem os anos
de felicidade mais sublime e ardente,
onde a alma é livre, e se torna estranha
à vagarosa volúpia e seu langor lento.

Quem corre para o limiar é louco, e quem´
o alcançar é ferido de aflição...
Agora compreendes por que já não bate
sob a tua mão em concha o meu coração.

Anna Akhmátova
(Russia 1889-1966)

Desencanto: Manuel Bandeira

Eu faço versos como quem chora
De desalento...de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.


Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai gota a gota, do coração.


E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.


Eu faço versos como quem morre.

Manuel Bandeira
(Brasil 1886-1968)

19 de maio de 2012

Cantiga do Ódio: Carlos Oliveira

O amor de guardar ódios
agrada ao meu coração,
se o ódio guardar o amor
de servir a servidão.
Há-de sentir o meu ódio
quem o meu ódio mereça:
ó vida, cega-me os olhos
se não cumprir a promessa,
E venha a morte depois
fria como a luz dos astros:
que nos importa morrer
se não morrermos de rastros?

Carlos Oliveira in Trabalho Poético
(Portugal 1921-1981)

A Lição de Poesia: Vasco Popa

Estamos sentados num banco todo branco
Sob o busto de Lenau

Abraçamo-nos.
E entre dois beijos falamos
De poesia

Falamos de poesia
E entre dois versos abraçamo-nos

O poeta olha para longe através de nós
Através do banco branco
Através do saibro da alameda

Ele cala magnificamente

Os seus belos lábios de bronze

No jardim público de Verchatz
Aprendi pouco a pouco
O que é essencial num poema.

Vasko Popa
(Sérvia 1922-1991)

A Sesta: Almada Negreiros

Pierrot escondido por entre o amarelo dos girassóis espreita
em cautela o sono dela dormindo na sombra da tangerineira.
E ela não dorme, espreita também os olhos descidos, mentindo o
sono, as vestes brancas do Pierrot gatinhando silêncios, por entre o
amarelo dos girassóis. E porque Ela se vem chegando perto,
Ela mente ainda mais o sono a mal-ressonar.
Junto d'Ela, não teve mão em si e foi descer-lhe um beijo
mudo na negra meia aberta arejando o pé pequenino. Depois
os joelhos redondos e lisos, e já se debruçava por sobre os
joelhos, a beijar-lhe o ventre descomposto, quando Ela acordou
cansada de tanto sono fingir.
E Ele ameaça fugida, e Ela furta-lhe a fuga nos braços nus
estendidos.
E Ela, magoada dos remorsos de Pierrot, acaricia-lhe a
fronte num grande perdão.E, feitas as pazes, ficou
combinado que Ela dormisse outra vez.

José Almada Negreiros
(Portugal 1893-1970)

Catarina Lencastre: Uma Paixão


Inda existe, cruel, inda, em meu peito
Se nutre de paixão o fogo activo;
Inda contra o teu gosto por ti vivo,
Fazendo o sacrifício mais perfeito.

Inda te adoro, ainda te respeito.
Vendo em ti de meus males o motivo,
Porém o coração de amor cativo,
No cativeiro vive satisfeito.

Se às vezes contra ti queixumes solto,
Do que fiz insensato então me admiro,
E aos meus antigos sentimentos volto.

Só por ti vivo, só por ti respiro;
Saíra com a minha alma em pranto envolto,
Teu nome unido ao meu último suspiro.

Catarina Lencastre
(Portugal 1749-1824)

17 de maio de 2012

Segredo: Ivo Barroso


Este segredo me tortura e encanta:
É minha glória e meu maior delito.
Agita-se em meu ser, delira e canta,
Depois se acalma, emudecendo aflito.


As vezes, nessa angústia em que me agito,
Tanta é minha ânsia de gritá-lo , tanta,
Que irrompe de meu ser e vem num grito
Morrer estrangulado na garganta.


Só muita força de vontade vence o 
Desejo de rompe reste silêncio
Que vem da covardia e vem do medo.


Pois que eu quisera, num ardor profundo,
Sair dizendo para todo o mundo
Que eu... que nós dois... mas lembro que é segredo.


Ivo Barroso
(Brasil 1929)